Encruzilhada

Encruzilhada

quarta-feira, 11 de março de 2015

Minha esposa, uma mulher

*Novo texto publicado no ORNITORRINCO, em ocasião do Dia Internacional da Mulher. Tem muita coisa boa lá!


Quando conheci minha esposa, não fui com a cara dela. Na verdade, na primeira vez que a vi, vi que era linda. Mas ao passo em que começamos a frequentar o mesmo local de trabalho, formei minha opinião: essa mulher é nojenta.

Eu era estagiário. Ela, repórter com dez anos de bagagem. Eu era simpático. Chegava na redação, passava de pessoa em pessoa, dando bom dia, ou boa tarde, ou boa noite. Ela sentava ao computador de fone enquanto decupava sua matéria do dia. E quando eu passava lhe dando bom dia, boa tarde ou boa noite, ela sequer me dirigia o olhar. Mandava apenas um ‘oi’. Muita marra.

Quando passávamos um pelo outro, no corredor, eu esperava cumprimentá-la, como fazia com todas as pessoas. Eu era boa-praça, sabia o nome de todo o mundo, falava com todo mundo. Ela mal olhava na minha cara.

De fato, até alguns meses antes do nosso primeiro beijo, ela não sabia o meu nome. Eu era apenas ‘o garoto que fazia imitações’.

E ainda assim, quando todos os homens se juntavam numa dessas reuniões de homens para cerveja, pagode e videogame, e faziam um top 3 das mulheres do canal, ela era minha vice-campeã – atrás apenas da apresentadora capa da Playboy. E eu sempre dizia: ela é metida, mas é linda demais.

Um dia a gente a dançou junto. Noutro, dançamos junto de novo. Num terceiro, estava tocando ‘Spring Love’.

Quando começamos a nos relacionar, eu não escondi a impressão que sempre tive dela. E, enquanto eu conhecia e me apaixonava por uma amante da fotografia, do cinema e da música clássica, alguém independente, que já percorrera o mundo sozinha, fã de Pearl Jam, Gil, Caetano, Luiz Gonzaga e Pink Floyd, e capaz de subir num salto plataforma e sambar num vestido vermelho como ninguém que eu já tenha visto na vida, eu aos poucos entendia a razão de sua postura no trabalho.

Sempre vestindo calça no seu modo repórter (‘fico mais à vontade’, ela diz) ela lembra até hoje quando uma amiga brincou ao vê-la de vestido, dizendo ‘Olha ela, vestida que nem menina’. Minha esposa já tinha namorado um companheiro de trabalho. E sabia o que alguns homens falavam entre si sobre as mulheres da empresa. E eu finalmente compreendi. A verdade me consterna tanto quanto me constrange.

Ela tinha aprendido com a vida que, especialmente num lugar carregado de energia masculina, quando uma mulher sorri para um homem, ou é simpática com ele, são grandes as chances do sujeito achar que ela está dando mole.

Num ambiente de trabalho, no Brasil, uma mulher pode ser saudada com beijos molhados indesejados na testa ou no rosto, mãos no ombro. Ou elogios de que ‘está demais nesse vestido’.

Se fechar a cara, poderá ser dito pelas costas dela que é nojenta, marrenta, metida ou antipática.
A questão é complexa. Não estamos falando de bons e maus, molestadores e vítimas, mas de costumes e comportamento.

Você pode considerar exagero, mas acredito que a linha entre um comentário elogioso e um vislumbre de assédio é tênue. Veja esse vídeo e pense sobre o assunto. Ou esse aqui. Ou esse do Porta dos Fundos. 

Minha esposa é uma das pessoas mais bem resolvidas que eu já conheci. Não quer ter filhos, casou com um homem nove anos mais novo, que atualmente ela sustenta, e cuja vida ela mudou completamente, para mais saudável, mais prazerosa e simplesmente melhor (ainda que não haja nada de simples nisso).

Ela entrou na faculdade aos 15 anos, virou repórter aos 20, cobriu tiroteio, enchente, Eurocopa, Olimpíada, UFC, virou correspondente internacional. Já viu uma competente colega não ser contratada porque, “num canal de esportes, não pode ter mais mulheres que homens”.

É a repórter mais eficiente que eu já vi. No trabalho, é notória pela competência, agilidade e organização. E ainda assim, muitos dos elogios que recebe são direcionados à sua aparência, o indefectível ‘Você estava linda’. No Twitter, ouve que é musa.  Ou, quando diz algo controverso ou polêmico, é chamada de puta ou vadia por quem discorda ou se sentiu ofendido. Num estádio, já ouviu torcida gritando que era piranha.

Não é exclusividade dela. Já trabalhei com várias apresentadoras. E quase todas têm histórias para contar sobre mensagens pornográficas via Twitter ou vídeos no You Tube que destacam seus decotes, quadris ou pernas.

O fato é que podemos gritar pelos direitos de minorias, sejam negros, índios, gays, pobres, sem-terra. Mas quando se resume a homem e mulher, somos nós, homens, os opressores.

Eu fui apresentador de TV. Nunca nenhum chefe me disse para eu maneirar no sorvete por causa do meu peso. Nunca ninguém me disse que os meus lábios estavam sensuais demais. Ou que eu deveria usar vestidos mais curtos. E eu nunca tomei cantada de entrevistado. Nem fui reduzido em minhas capacidades por ser um rostinho bonito. E olha que eu sou um rostinho bonito.


Hoje li uma frase. E mais uma vez, tenho que citar aqui Cynara de Menezes. “Enquanto ainda for preciso um dia da mulher, este continuará a ser um dia de luta”.

foto American Girl in Italy, Ruth Orkin, 1951