Encruzilhada

Encruzilhada

Poemas de setembro

01/09

Fogo nas entranhas

Do ventre em chamas
O corpo emana
Ama
O passo, o pulso
Voz inflama
Decidida
Seca, pronta e definida
Reclama
Posses, poderes
Ossos, deveres
A fronteira da palavra
Emitida e entoada
Solitária e desejada
Operária e delegada;

Um estranho clama
Pelo canto contido
Relegado, aturdido
Canto ruído
Moribundo e falido
Decadente esquecido
Canto da alma calada
Se engana
Verbo da vida abafada
Insana.

02/09

Sozinho marchei/Noite e dia/Em tempo frio/Solitário e solidão


Solo

Mono
Um
Uma
O
A
Eu

Apenas

Mente
Sou
Não
É?

03/09

ruiva

Pé no chão
Terra molhada
Grama entre os dedos
A moça é deitada

Musa, ruiva
Pelo que espera?
Pelo amor que considera
E não lhe chega?
Paixão, sabor e dúvida
Pudera
Sozinha espera

Pela chuva, ruiva
A lhe molhar os fios vermelhos
Abençoando-a pelos cabelos
Tocada pouco a pouco em sua pele alva
Lembrada pelo céu
Pela chuva salva;

A ruiva levanta
Cansou de esperar
Caminha pra longe
Pra outro lugar

O amor não lhe chegou
Haverá alguém pra amar?
Veio a água e lhe salvou
Ela vai sem mais voltar

E amanhã, em outro chão
Outro porém, outro senão
A ruiva há de acreditar:
O sol virá pra lhe secar.

04/09

Heráclito

Quem eu era ontem
Não sou mais eu
Tampouco o serei amanhã
Outro
Sempre outro
Um dia a mais
E nunca
Nunca iguais
Hoje
Sou
Um
Único
Som
Na tempestade da terra
Canto exclusivo de um dia
Gota de sangue vazado em guerra
Verso de uma nova poesia.

05/09

Poema do sonho no campo

prado
palavra com cheiro de mato
céu azul sobre verde gramado
desnudo
mergulho sozinho no lago

costume de terra arraigado
me perco, procuro o sagrado
ser amado
deixando de ser quebrado

campo arado
sentido meu, pecado
é fardo
destino mal-fadado.

06/09

Canto do dezembro inacabado

O verão acabou
Você me deixou
Incompleto
Vazio por dentro
E repleto
De dura certeza
Nunca te tive
Caminhava em estrados
Encruzilhadas
Buracos elevados
Esperando cair
Acabar
Esperando você partir
E se foi
E caí
E se voltar, estarei por aí
Alma ferida
Sem despedida
Caído inda sobrevivi.

07/09

V de veneno

Vivo
Vejo
Viva
Vinda
Vista;

Vindo
Vulto
Veste
Vasta
Veste;

Volta
Vive
Volta
Vence
Vira
Varre
Vida
Vai-se.

08/09

Vencidos e perdidos

*ao amigo Heiner

Perder não é perdido
Tanto quanto
Vencer não é vencido

Veremos vitória verdade
Seremos derrota e saudade

Triunfo também é fardo
Fato reversível
Revés é lição
Fase imprevisível

Escritos da canção
Estrelas da nação
Centenas de heróis reunidos
Tão vencidos quanto perdidos.

09/09

Canto da noite triste

Que sabes tu de dor
Sem poder apanhar
Ou bater

Que sabes de amor
Sem querer, sem amar
Ou perder

Que sabes tu
Falando de viver sem temor
Dizendo o que fazer
Qual rigor?

Não diz. Não fala.
Cala.
Caminhemos em silêncio
À sombra da calma
E sabores da alma.

10/09

Quente noite fria

Corpos colados
Lançados na noite vazia
Apertados
Tomados por luz dourada
Atados
Pernas, braços, fantasia
Segredos e atos
Laços
Descobrindo pedaços
De pele 
Com toque delicado
Da ponta dos dedos
A ponta dos lábios
Uma linha melodia
Faz o tom da sintonia
Entrosados
Combinados
Instintos despertos
Sentidos abertos.

11/09

No dia em que o vi, não falei, não parei, não ouvi

O diabo se veste de branco
Esvoaçante pela cidade
Não tem idade o corpos santo
Imagem bruta, liberdade

Pronta aparição
Estrela da luxúria do anseio
O rosnado do trovão
Vestido branco, cabelo preto, batom vermelho

Olhos escuros, poderosos inda que ocultos
O demônio move-se entre corpos, entre vultos
Caminha à frente de seus seguidores
Desperta adiante horrores e amores.

12/09

partida, o refúgio e a revelação

Suficiente
Isolado
O corpo é refugiado
Camuflado
Numa praia distante
Horizonte de areias brancas
Pisando memórias tantas
O futuro é um deserto
Areia, sol, concreto
Extenso, imenso
Pretenso eterno
Intenso
Berço e caminho do silêncio.

13/09

Profecia

Sonhos sombrios me invadem à noite
Fantasmas passados profundos deixados
Destroços de ossos reduzem esforços
E o resto são sobras de sonhos roubados

Serão esquecidos
Cavalos bandidos
Selvagens amigos
Banidos serão

Entre o que foi e o que é
Nada jaz aqui de pé
E o que será, talvez virá
Num canto decidido pelo ar.

14/09

bom inverno

Só na floresta
Constrói seu pilar
Dentro da mente
Reduz a maré;

Gritos de rei
Fora da lei
Versos repetidos
Reprisados
Enclausurados
Escravizados na pele;

Ao que a queda se anuncia
O dia corre a se deitar
Não por correr nem por chorar
Majestade do vazio
Quem saberá ser rei sozinho?

15/09

estrangeiro acordado

Não sobre você, estrela da manhã
De névoa redentora, história anciã
O chamado da noite é mais forte, é primeiro
Primário cenário, solitário estrangeiro

Homem sem terra, órfão do mar
Vive sua guerra, vive sem ar;
Homem sem fé, em preto e branco
Vaga de pé, seco em seu pranto;

Que queres, triste figura?
Desfazer-me de verdade armadura
Ser livre, puro, sincero
Assim vejo, assim sonho, assim quero.

16/09

Arco

O senão e o será
Irmãos
De consideração
Rasante previsão
Amante do negar;
Porém, além
A curva e o refém
Poder em exclusão
Solução
Após a conclusão;
O primeiro e o derradeiro
Início e fim, sem meio
Um caminho verdadeiro
Para todo prisioneiro
Jornada e redenção.

17/09

rugido

gritos e ecos
berros secretos
as bestas do ventre
nas entranhas do sempre
a carga, o fardo
a merda, o fado
no centro do ser
reunindo poder;
monólogo de drama
o monstro tece sua trama
tal aranha com inseto
faz do homem, objeto;
dominação
alimentação.

Devorá-lo-á.

18/09

Homem caído em noite solitária

Por que choras, homem grande?
Pelo olho branco da noite?
Te queima, te olha, te mata?
Guerreiro ferido, que pensas?
Queres um pedaço de estrela?
Sentar no muro do infinito,
Ver o tempo se dobrar?
Que te come por dentro?
O imprevisível, o improvável, o impossível?
A chave perdida jogada no mar?
Nunca longe demais ou perto o bastante?
Por onde vais, menino?
Subir a escada virada pro céu?
Vencer a torrente do fim da rua?
Amores não morrem, mas mortos não choram.

19/09

Y

Por entre os dias desperdiçados
E anos desperdiçados
A rima escorre da escuridão
Desafia o dourado leão;
Daqui ao sol
Maior, muito maior que o som
Sob pilhas e pilhas de dedos e medos
Desejos se afogam no chão;
Fugirei pro oceano
Navegando tantos dias
Num encontro com a noite
Milhas e milhas de longe;
Eleito estranho por mim mesmo
Ao longo de vida, sonho, ano
Ninguém te amou como ou te amo.

20/09

Quando me for, não olhe pra trás

Eu vou te deixar
Como sopro no ar
Um grito ao vento
É só silêncio
Só silêncio

Vou partir
Vou fugir
À maneira de seguir
No contra-tempo
O contra-tempo

E se voltar
Vou sorrir
Vou ficar
E aqui me sento
Aqui me sento.

21/09

Canto do perdão

Perdoa, amor
Que a pele não esquece a dor
E o amor tem vias para dar
Tudo que precisar

Perdoa, amor
Que o choro teima em não secar
E os anos vem pra lhe cobrar
O que você plantou

Perdoa, amor
Confia que a dor vai passar
A chuva chega sem temor
E o tempo vai limpar.

22/09

Silêncio Atlântico

A quem se cala
A fala
Pode me ver?
Do lado mais longe deste oceano
Fui-me, a viver outro plano
Por mim e por você
Sonhar menos que ser
Potência de próprio poder;
Ver por onde corre a água
Vem fugida a velha mágoa
Ensinada de pai pra filho
Filho e pai;
O perdão da sobrevida
Aqui se vai.

23/09

Acabou chorar

O dia de melancolia
É silêncio
Dia cinzento
Triste de momento em momento
Dia vazio
Piso por um fio;

O não-lugar de um coração
É o descartar de uma canção
Aleatória
Um filtro sem memória;

Mas no fim me vem o som
Tempo bom e vai além;
À melodia dos Baianos
Tudo passa e fica bem.

24/09

Canto da madrugada V

Perseguindo letras
de dentro do manto da noite
sombras
me fazem companhia
imagens da poesia;

Governam um cenário,
meu diário
incendiário do desejo,
cabeçalho de um lampejo
sem nome ou forma
ou corpo ou norma;

Ser de alma pura
segura imaginação;
ingresso por bravura
madura intuição.

25/09

Na curva da calçada, embaixo da escada, o fim para dois

Como quiser
Vou me quando vier
Você
Viver
Longe de uma mulher
Por quê?
Num universo do que puder
Querer
Um sabor, um valor
Uma dor qualquer
Cadê?
O pedaço de amor sobre uma colher
À mercê
É o resto de ardor por onde estiver
A perder.

26/09

Nada vai mudar meu mundo

Correntes furiosas
Varrem chão de terra seca
Gigantes distantes
Cospem raios por cometa

Cidades tremem
E eu mudo
Mudo

Ruas mortas, desertas
Vias tortas entre setas
Pra todo lado
Por todo canto

Rios queimam em curso
E eu mundo
Mundo.

27/09

terra além do penhasco

Acima dos montes verdes
ao fim da noite
posso ver você
me chamando
me estendendo a mão;

Há um lugar, além do olhar
de sol nascente, brilhante
sorridente
crescente sobre mar e areia branca;

Deixo sua voz me guiar
obrigado;
e posso ver, posso estar
neste lugar,
a coisa mais bonita que já vi;

E lá estão vocês
num tempo parado
silencioso;
E lá estão vocês
me convidando pr'um abraço;

De pés descalços, flutuo
braços abertos
carregado de amor
cheio
inteiro
não mais distante;
lá estou eu
sendo o bastante;

E lá está você
trazendo pela mão
o perdão
dizendo que está tudo bem;

Meu próprio paraíso
livre de penar ou juízo,
meu abrigo aberto
vasto, completo
de erros, conquistas
e dores.
E amores. Todos amores.

E você, num vestido vermelho
do beijo, o nosso primeiro;
E você me leva além
e além, adiante
para ser o bastante, o bastante;

E vocês me abraçam, me tocam
e os corpos unidos nos completam
nos confortam
e há amor;

Vocês, meus amores,
dois amores
não há mais temores;

Estou aqui
e estamos todos.
Tudo que se queria ser
aqui
Todos. Nós.
Amado, completo
repleto
realizado;

Além da montanha,
além do penhasco
e eu estou com vocês.

28/09

"Índio, caboclo, cafuzo, criolo"

De um coração inflado de sangue
Pulsa e jorra a força dos nativos
Do sul
Pais do tempo
Órfãos da História
Espíritos de ébano
Vários em tons
Ricos em sons
Tragam-me o canto da floresta!
Os deuses da água!
A vida que respira rasteira
Em harmonia com a casa
Tragam-me a beleza difusa
Dos amores humanos da noite!

29/09

espelho do mundo real

Haverá beleza na natureza?
In natura
Será pura
Nua
O que há, o que existe
É.
Por si mesmo
Não por dito
Escrito
Vendido
Mas por simplesmente existir
Mais que lindo
Mais que um ser belo
Belo é ser.

30/09

Um lugar para sonhar

Sorrateiro porém nobre
O sonho se infiltra
Reúne-se em passos
Por ruas cinzentas 
Barulhentas
O impulso de viver essa outra vida
Pedaço por pedaço
Batida por batida
Ergue-se a ponte
No caminhar
Embaçado o horizonte
Neste novo lugar.
A nova York,
Que grande cidade para se sonhar.