Encruzilhada

Encruzilhada

Poemas de novembro

01/11

barco dos mundos

Rasgo o peito em liberdade
Vaidade 
É só o que existe pelo ar
Auto-centro ego eu
Saudade matará o que virá

É só carência
E todos surdos
E loucos
Aos gritos
E aos poucos
Correndo no caos
De um navio afundando
Cada um com seu desmando
Animais
Todos os mundos é peso demais.

02/11

Mortos

o corpo morto
o corpo todo morto
todos mortos
corpos
tudo, todos
mortos
corpos
mortos
nossos
corpos
mortos
somos, fomos
sempre
tortos
tudo morto
todos mortos.

03/11

abismo

E como não olhar nos seus olhos
E chorar
E aceitar sem lamentar
Mais por mim que por você
Mais por você que por mim
Será mais justo viver no escuro
Será mais justo viver assim
Partir, um dia
Romântica fantasia
Como se atrás de despedida
Houvesse outra vida
Lutar, conforto final
Separar-se do ideal
E queimar-se por dentro do ninho;

Lutar por ficar de pé sozinho.

04/11

mundo dos seus olhos

deitada
"nua"
esperando por mim
"sou sua"
guardada em meus braços
"seus olhos em mim"
meus olhos em você
"meu mundo nos seus olhos"
o mundo dos seus olhos
"escuros"
claros
"fundos"
raros
"seus olhos no meu mundo"
meu mundo nos seus olhos.

05/11

Um adeus

Cheguei sem ser visto
Sem ser visto me vou
Rumo ao nosso próximo encontro
Em outro dia de frio
Ou de alegria
E então até
Eu estarei lá
Ou vocês aqui;
Sim, vocês aqui
Vocês sempre aqui
Dentro
Vocês aqui todo tempo.

06/11

diabo

Rosto esfumaçado
Caminha o diabo
Na rua ao meu lado;

Andará rápido assim
Fará o que puder de mim;

Fala com paixão:
Doutor, vendo meu coração
Por um espaço a mais na alma

Minha lição aprendida
Poesia perdida

E o abraço do homem
Se desfaz em pedaços
Solidão

Velada, mascarada, disfarçada
Desencontrada solidão.

07/11

invenção do amor

para Karin

Amor é egoísta invenção
E onde estaria eu sem o meu?
No chão
Caído coração
Perdido
Em queda num abismo escuridão

Meu amor me resgatou
Me amou
Me traçou nova vida
Me levou em seguida

E ainda enquanto procuro um lugar
Ou se penso então em quem vou ser
Sei que perto de ti será
Quero alguém que seja com você

Não aumento, não afago
Amor é invenção egoísta.
Mas como contigo
Com esse amor ao meu lado
Nunca soube como é ser tão amado.

08/11

A pequena mancha do sol

Você é a sombra
A sobra de um homem
Apenas sua escuridão
Viajando sozinho
Voando para a imensidão
Um rastro de história
Capítulo jogado fora
Distorce-se em mancha
Torcido diante do dragão
Deus dourado
Fogo em erupção
Esmigalhado
O abandonado errante
Derrete na luz do gigante.

09/11

Na companhia do príncipe da noite

Sob o céu da lua recostada
Jaz o príncipe da noite
Vestido em manto escuro
Maduro
Canta versos de tristeza
Na penumbra de uma luz enfraquecida
Acesa
Voz lamentada
Abafada
Move-se, o jovem, em poucos passos
Cria laços
Com quem o ouve
Toca notas com a ponta da pele
Reduz-se à figura solitária
De uma festa ordinária
Onde é ele o anfitrião,
O mestre, o dono do refrão.

10/11

única bala do canhão

ratos
seguem meus passos
fracassos
rastejam pedaços
percorro a via central da razão
o meio da rua
o alto da lua
o núcleo do meu coração
de encontro a um caminhão
de verdade
vontade
vaidade
decisão
sou a única bala do meu canhão.

11/11

Window

Can you see?
All the worlds free
Through an open wide window
Tonight
With no glimpse of shadow
You play the role of light;

Now, can you be?
All the freedom that is
Embracing the whole sea
In a flashing light
Fast and bright
All of the things to be seen
All of those places, there you've been.

12/11

Versos do subterrâneo

Os espaços deste trilho
São pedaços de vazio
Intervalos
De lixo da vida partida
Interrompida
De momento em momento
E viagem em viagem
Sempre movimento
Sempre paisagem.

13/11

Bibi canta e vive, vive e canta

Qual mulher, rainha, diva
Sois deusa!
Tal é o poder que mantém presa
Nossa visão diante de ti.

Uma entidade, encarnação
Coisa alguma de outro mundo
Ou outra vida, tantas
Haverá em ti só um coração?

Ou será toda carne
Sangue, alma e emoção
De corpo inteiro
E gesto e voz

Restando a nós, pequenos mortais
Aplaudi-la, aplaudi-la e aplaudi-la mais.

14/11

Tears of you

Let me cry
Sorrounded by my tears 
I lie
Flooded by the fear
Of letting you in
Having you not near
Would it be a sin?
Drowning out in pain
Feeling down my vein
My gut
The cut
Driving me insane
Nothing but the rain
Keeps coming
Humming through the air
And there's no one there
So let me cry
Tears of you is all I got tonight
Leave me be but keep me in your mind
Forever wasn't ever ours to find.

15/11

memória de você eu

As portas se abrem
Eu entro
O que haverá lá dentro
Não sei
Um caminho, um tormento?
Pensei
Um destino, um lamento?
Temi
Até aqui, pude fugir.
Agora enfim encaro o sentimento
Não mais sofrer, não mais mentir.

16/11

Canto cor de mel

Pisando céu, cor de mel
Em tom pastel
De paixão esmaecida
Escrita e deixada em papel
Dormida, envelhecida
Um fino e leve véu
Recai sobre essa vida;
Ferida num hotel
Guardada a mais temida despedida
Faz de mim culpado réu.
Amada, querida esquecida
És restos de tinta seca no pincel.

17/11

agora, Josés

Lamento a mentira da manchete
Homens de luta
Encurralados
Condenados muito antes de julgados
E ainda assim lutarão
Por essa guerra de sempre
De punho erguido e coração
Porque agora se vence
E se vive ainda que ferido
E verdade não se esconde da memória
Homens são justos do perigo
O tempo faz justiça na História.

18/11

curiosidade luminosa contra o mundo

Na escuridão desta aventura
Resto-me nesta figura
Cercado de breu
Sem saber se haverá o que é meu
Pois não se vê o que há adiante
E não há luz no fim de um túnel tão distante
O único brilho será o de agora
Na imensidão desconhecida aqui de fora
Um pequeno ponto de luz
Me conduz
Um passo por vez
E um caminho será, talvez
A luminosidade limitada da viagem
Curiosidade, determinada esta coragem.

19/11

tom mais quente de azul

E lá se vai Adèle
Quebrada de amor
Pois pernas e braços cruzados 
Se parecem, se confundem;
Com azul por todo lado
Cabelo indomado
Adèle esfomeada se deita sob o sol
Procura a própria essência de ser;

E lá se vai Adèle
Mergulhada no seu próprio mar de lágrimas
Azul como não poderia deixar de ser;
E os cabelos molhados, deixados
Deitam-se nas águas de seu verão;

E lá se vai Adèle
De cabelo comportado
No caminho do passado;
Mal chega e já se vai
Levando agora e sempre
O vazio ao seu lado
Vestindo azul enamorado.

20/11

sabor teu

Você tem gosto de mundo
Todos os prazeres num segundo
Sabor de amor
Profundo
Calor molhado
Um momento de tempo parado
Nesta noite
Pedaço de sonho quente
Vivido acordado
Dois corpos deitados
Fugidos do norte
Lançados à paz de uma pequena morte.

21/11

Homem menino, menino homem

O homem que é menino
Sofre por não saber pr'onde ir
"Embaraçoso é sorrir"
Pensa, quando nervoso, sem o que dizer
"Afinal, o que fazer?"
Se pergunta com medo deste mundo escuro;

O medo, monstro oposto do que quer sentir
E por isso esconde-se dentro de si
Numa luta interna
Entre o que é e o que pode ser

Apanhando do mundo, esperará por mais?
Torço para que sim, caro amigo
Que tenhas a esperança da criança que há contigo
E a perseverança dos grandes homens deste lado partido.

22/11

sinfonia do leste

"Traição!" bradou o príncipe
Pródigo em retorno a casa;
Enganado, viu isolada
Sua própria decisão;
Escondeu o coração
E abandonou suas vestes
À garganta do dragão;
E correu louco por suas muralhas
A salvo dos canalhas;
E gritou rouco na chuva
Até rasgar a voz;
Escreveu então a nós
Para não ensandecer 
Refugiou-se nas histórias
Que agora me ponho a lhes dizer

Ursos dançavam no topo da colina
Ao fim de tarde nesta vila;
Homens por medo temiam
Que seria da vida com as feras por perto;
Armaram-se e no calar da noite partiram;

Uma menina amanhece faminta
Adormecida sobre a ponte cinzenta
Vestido branco, corre descalça, sozinha
Viajam os olhos à volta do rio à procura,
E avistam na margem distante sua própria figura;

O amante do vinho
Põe-se de pé no caminho
Entre a vida e a morte;
Pronto a libertar-se à sorte
Encontra antes a menina
Aos seus pés, esta face fina
Lhe pedindo que não,
Lhe trazendo de volta ao chão

Ao passo que a comoção se faz presente
Quando um punhado de gente
Recebe os caçadores da madrugada
Enquanto o homem e a menina
Se aproximam da parada
Lanças ao alto, ensanguentadas,
Carcaças humanas celebram a cena;
E ali em frente, a presença e o sobrevivente
E o príncipe isolado recosta sua pena.

23/11

Ao apagar das luzes, à luz de velas

Ali jazem nossas vidas
Estendidas no escuro
Negro prado sob estrelas do passado
Nossas brigas escondidas
Os temores do futuro
Nós, numa ilha do tempo, cercados
Um céu vazio assustador
Reflete lá de cima as esperanças
Ausentes, trarão sempre mais que dor
Transformar-se-ão, serão lembranças
E o céu tornar-se-á água
Um rio que passa nossa história
Espelhando nossas vidas
E levando-as embora.

24/11

fole do meu peito

Infla-me de ar
Enche-me de paixão
Que cheio também sou pleno
Sereno, sou artesão
Respirando criação
Na loucura nos reconhecemos
Expirando tensão
Pronto a pisar novos terrenos
E os venenos da terra
Desterrado da minha treva
Trovador do meu próprio hino
Inocente do meu destino.

25/11

Eis questão

"Aprenderemos a mudar?", me pergunto
Arguto é o poeta que questiona;
Seguiremos o mesmo caminho?
Como cegos a vagar
Em círculos de escolhas repetidas
Reprises em toda nossa vida
Será isso, afinal, ser?
Bater a cabeça contra a parede
De novo e de novo e de novo
Será ser humano ser também estúpido
E esperar
Esperar com esperança
De que a parede vai quebrar
Antes da cabeça da criança?

26/11

Irmã

qual manhã, minha irmã
te voltarás pra mim
como criança, assim
um abraço, um carinho
aves do mesmo ninho;

qual manhã, minha irmã
te voltarás pra mim
enfim
e seremos iguais
e mais
seremos irmãs
nesta manhã

e sempre.

27/11

menina que queria fugir

a selva escura
e ela descalça
correndo sem caminho
em terra falsa
e chão de espinho
agarrada em pés e mãos
joga-se contra a luz
à hora em que seus nãos
criam seu capuz
e em finita escuridão virá
e maldita mansidão será.

28/11

Play

Brinquemos de vida então
Neste espaço, neste chão
Eu e você, vocês e eu
Nós, vós
Pois somos todos
O mesmo ato
A ação
De investigar e tentar entender
A paixão
O porão nosso de cada dia
O ser humano profundo;
Todos somos a ilusão
Mais poderosa deste mundo.

29/11

Paralelos II

Paralelos
Traçam-me os paralelos
Me fecham num labirinto
Com uma saída à mostra
E 'inda assim sem resposta

Paralelos
Confundem-me os paralelos
Borram as fronteiras da memória
E jogam-me num mar de caranguejos
Pra todos os lados fogem meus desejos

Paralelos
Intrigam-me os paralelos
Qual será o melhor ser?
Aquele que sonha o que quiser
Aquele que foi, que é?

Paralelos
Matam-me os paralelos
Me fazem viver outras vezes
Outras vidas como razão pra minha
Costuro as histórias e minh'alma é a linha.

30/11

corpo que cai

Almas caem 
Desabam na terra
No chão
Qual migalhas de pão
Corpos cansados
Lançados ao certo
Desconhecido
Sob a lei da gravidade de viver
E no último respiro
Ser
A assustadora fantasia de voar.


Foto de Richard Drew