Encruzilhada

Encruzilhada

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Um filme para ver de casalzinho. E depois ir pra casa foder.


Assisti ‘Love’ numa pré-estreia à meia-noite, sábado passado, sozinho, no Cinépolis Lagoon. Amo filmes à meia-noite. Adoro ir ao cinema sozinho. Não gosto tanto assim do Cinépolis Lagoon.

Depois de estranhar que a pré-estréia do novo filme do chocante, experimental e provocador Gaspar Noé (Irreversível, Enter the Void) fosse realizada no multiplex da Lagoa, fiquei intrigado ainda com público que vi chegando. Casais heterossexuais pegando o cineminha de fim de semana, com direito a pipoca e coca-cola. Imaginava que talvez estivessem ali mal orientados pela sinopse do jornal: 

- Drama. Murphy recebe o telefonema da mãe de Electra, sua ex-namorada, que desapareceu há algum tempo. Ela teme que algo de ruim tenha acontecido. Ao longo de um dia chuvoso, Murphy fica sozinho no seu apartamento, lembrando-se da relação mais marcante de sua vida. 

Esse tipo de sinopse deixa de informar ao leitor desavisado um detalhe importante: há muito sexo explícito em ‘Love’.

Segui minha apreensão, me perguntando se aquelas pessoas sabiam o tipo de filme que estavam para ver, enquanto acompanhava os inexplicáveis trailers de lançamentos infantis como ‘Peter Pan’ e ‘Shaun, o carneiro’ (!) e colocava meus óculos 3D - depois de Wim Wenders em ‘Pina’, Noé é mais um dos grandes do cinema autoral a experimentar o formato, e aproveita a oportunidade para (literalmente?) gozar na cara do público. Um problema no projetor ainda estendeu minha ansiedade por alguns minutos. E eis que surge a primeira cena, um plano contínuo e explícito de masturbação entre os dois personagens principais. Até ele gozar.

O que se seguiu no cinema foi a constatação de meus preconceitos e problemas mentais. Não vi ninguém saindo da sala, nenhum risinho infantil, nenhum comentário. E aí talvez tenha percebido a perda de tempo de, ao menos naquela situação, questionar o motivo de aquelas outras pessoas estarem ali, fazendo a mesma coisa que eu.

E mais, eu mesmo estava mais preocupado com a reação das pessoas ao sexo, que eu sabia ser parte predominante do filme, do que com o filme em si. Ao menos a ficha caiu logo.

Porque ‘Love’ é um tremendo filme, fotografado lindamente por Benoit Debie e seus planos parados e personagens emoldurados entre cores, que comentam o momento (o verde do relacionamento quando começando, o vermelho do relacionamento em ruínas e do ressentimento, o amarelo da fantasia sexual, os tons pastéis do presente vazio).


A narrativa é toda masculina e pode ser acusada de ser sexista - as personagens femininas, aqui, existem mais como ramificações da existência do protagonista e tem menos espaço para desenvolver sua tridimensionalidade. Ao mesmo tempo, o filme todo é, em si, uma jornada pelos pensamentos e memórias do protagonista Murphy (Karl Glusman), o que, de certa forma, justifica o destaque e desenvolvimento maior para o seu personagem, uma vez que estamos vendo a história toda do ponto de vista dele.

E o sexo está diretamente ligado à maneira adotada para contar toda essa história. Do modo como é realizado, ‘Love’ é capaz de lançar o espectador no tornado de uma paixão, passando pela dor, o prazer, as fantasias, as experiências e a destruição que o amor pode causar. E é um dos filmes mais excitantes que eu já vi na vida. 

Gaspar Noé parece ainda dizer que há algo de pessoal aqui. Ele mesmo atua como o ex-namorado de Electra (assinando Jean Couteau), e se coloca na narrativa ainda dividindo seu nome entre seu próprio personagem (Noé) e o do filho do protagonista (Gaspar). Em um determinado momento, Murphy, um estudante de cinema em Paris, manifesta seu desejo de realizar um filme sobre o amor, mas com sangue, esperma e lágrimas. Minha visão é a de que Gaspar Noé fez justamente esse filme.

Um que, no Lagoon ou em qualquer outro cinema, no sábado à noite ou em qualquer outro dia, é perfeito para assistir de casalzinho. 
E depois ir pra casa foder.

Trailer

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A.mar.é

Dei uma mordida em cada pedaço
E aí peguei um pedacinho
De uma ou outra mordida
Aquelas que guardei
                     E não cuspi pelo caminho
Mais próximo da luz
                     Enfim pude andar sozinho

Alguns, eu vi, desistiram
Outros, como eu, aqui seguiram

Eu tentei, eu provei
Eu vim, vi,
             desperdicei
Tudo que trouxe eu deixei pra trás

E agora eu sigo
Mais
À procura de paz
Eu sigo
Mais
À procura da paz

The tide

I took a bite of every bit
And then I took another little bit
Of every other bite
The ones I kept and didn't spit
The ones that brought me closer to the light
Some, I saw, they quit
Some, like me, survive 

I've tried, I've tasted
I came, I saw, I wasted
Everything I brought I left behind

And now I strive
Strive in search of peace of mind
Now I strive
Strive in search of peace of mind.


quinta-feira, 10 de setembro de 2015

NY-RJ


É duro mudar. Já não conto mais nos dedos as vezes em que me peguei com aquele frio na barriga, diante de um penhasco metafórico, temendo me jogar. ‘É preciso pular para voar’, me dizia um professor de interpretação nos Estados Unidos.

Mas o medo sempre está por lá. Às vezes na forma deste embrulho, outras na procrastinação. Demorei uma hora, por exemplo, para começar a preencher esta página em branco que você agora lê. E por quantas outras vezes não deixei tudo de mais importante para o dia seguinte, sempre com fé de que amanhã eu vou fazer?  

Há ainda as vezes em que bate a boa e velha preguiça. Boa, velha e mentirosa preguiça. Certa vez, outro professor de interpretação (mestre do primeiro a que me referi) me perguntou o motivo de eu sempre chegar atrasado às suas aulas. Eu disse que ia pra cama tarde, sempre dormia um pouco mais da conta e acabava perdendo a hora.

Ele perguntou ‘Por quê’? Eu respondi ‘Porque sou preguiçoso’. Ele emendou ‘Eu não acredito em preguiça’.

Ele estava certo. Aquela preguiça era medo. Medo de crescer, medo de mudar. Tamanho medo de não conseguir o que quer que se queira, que então melhor nem tentar. Talvez toda preguiça seja medo. Desde então, também não acredito na preguiça. Embora ainda seja preguiçoso.

Estou de volta ao Brasil, ao Rio de Janeiro, depois de dois anos morando em Nova York. É uma sensação estranha. Quando saí daqui para me mudar para outro país, sabia que ia voltar em dois anos. Agora, há uma semana, deixei Nova York. E não sei quando vou voltar.

Todo adeus tem um pouco de morte. Ainda que a morte seja um passo para um renascimento, uma nova fase, um novo momento. Ao deixar Nova York, eu me despedi de muitas coisas. Dos meus passeios de bicicleta, do supermercado de comida natural, dos parques, dos amigos, do jazz, dos teatros, das minhas sessões à meia-noite, dos meus lugares favoritos.

É minha última noite na cidade, assisto a uma sessão de ‘Veludo Azul’ no IFC Center, o cinema em que me senti em casa pela primeira vez na cidade, há dois anos, quando me deparei com aquele letreiro antigo na saída do metrô da West 4th St. E aí caminho por umas duas horas, cruzando ruas, entrando e saindo de bairros, esbarrando em bêbados do Village ao Lower East, mendigos em Midtown, e gente que anda na madrugada como se fosse dia. Entro em um pub, tomo um uísque sour e um mojito. O garçom irlandês me pergunta como foi o meu dia. Eu lhe digo que é minha última noite na cidade. Estou voltando para o Brasil. Ele diz que sente saudades da Irlanda.

Minha esposa diz que dois anos passam rápido. Ela diz isso há dois anos. Eu discordo. O tempo é sempre relativo. Nós só o percebemos ao passo que ele passa. Olhando pra trás, tudo parece rápido, curto. Porque já vivemos, estamos olhando para o que já foi e vivendo de lembranças e recordações. Enquanto adiante, nada é; tudo sempre está para ser. O futuro é uma luz que te cega quando você olha direto pra ela. E aí é como se houvesse todo tempo do mundo. Porque não se pode ver. Talvez o tempo seja a manifestação mais concreta da vida. Ou de Deus. Tal qual o futuro, Deus também só existe à medida em que acreditamos Nele.

Lembro de Shakespeare. ‘Sabemos o que somos, não sabemos o que poderemos ser’.

Agora estou no Brasil. O mesmo Brasil que defendi tantas vezes (inclusive aqui no ORNITORRINCO), saudoso que estava quando lá, feliz quando passava eu uma semana cá. Um amigo certa vez me contou uma piada cuja moral era: o inferno – e o paraíso também – são diferentes pra quem vem visitar e pra quem vem morar.

Se quando parti tive que me acostumar a tudo novo, bairro, cidade, apartamento, meio de transporte e modo de vida, aqui a vida segue a mesma. A mesma praia, o mesmo hortifruti toda segunda-feira, a mesma casa, a mesma avenida. É quase como se não tivesse ido. Como se tivesse simplesmente voltado de férias.

E entre tantos sentimentos misturados, descubro um verso de Fernando Pessoa que define esse pouco de morte e esse novo nascimento:

“Tudo é o mesmo afinal…
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal”.