Encruzilhada

Encruzilhada

Poemas de abril

01/04

Vida em nada


Não me disse

Nada
Não me trouxe
Nada
Nunca me fez
Nada
Não me ensinou
Nada
Nunca me deu
Nada
Nem me levou pra
Nada
Não fez questão de
Nada
Nem reclamou de
Nada
Jamais quis mais que
Nada.

02/04


Lide


O quê

Onde
Por quê?

Quem

Você
Quando
Você
Vem?

Como

Saber
Do seu
Querer?

O quê

Você
Quando
Eu
Quem
Fomos
Como
Vós
Por quê?
Sós
Somos
Nós.

03/04


Depois, amor


Da sombra de um quarto escuro

Invadido pela noite azul
Te aguardo, sangue destilado, impuro
Te espero, de corpo aqui deitado, nu

Somos juntos qualquer coisa incomum

Algo a mais, sem precedente;
Somos não, somos todos, somos um
Unidos, ligados, pelo que se sente

Eu, você, assim

Aqui, nós dois
A sós, sei lá, sei sim
Só sei, amor, depois.

04/04


Mudei


Mudei

Pra onde fui?
Se fiquei
Sou tolo, mui

Mudei

Não vi, perdi
Se chorei
Foi só por ti

Mudei

E talvez não pra melhor
Estudei
O futuro eu sei de cor

Mudei

E pra quem, pra mim
E pensei
Estou aqui, estou assim

Mudei

Sou outro, além
E não sei
Eu sou mais quem?

05/04


Sabor do amor presente


O sabor do teu amor é quente

Presente
O calor do teu amor é outro
Solto
É doído teu amor doente
Mente
É bandido teu amor grosseiro
Inteiro
Entendido teu amor sozinho
Carinho
Isolado teu amor solista
Conquista
Minha terra, meu amor ateu
É seu.

06/04


Atirado à vida


Vida é sonho?

Sonho é vida
Erguida
Sobre o sonhar
Sofrido
De vagar, amigo
Sem pesar
Ao mar, homem ao mar!

O homem vivido

Incompreendido
Se atira a nadar;
Oceano escurecido
Por mãos e pés atendido
Põe-se a respirar;

Respira ar

Respira.
Ar.

07/04


Máscara

De onde veio esse sorriso gigantesco

Ou é pretexto?
Pra eu me apaixonar

Se é tudo texto, te põe no eixo

Separa um trecho
Pra eu me aproximar

Te provo, te como, te jogo

Aposto que a cara cai logo
Tão pronto me ponho a rimar

Se faço do nada uma linha

Se podes chegar-me sozinha
Inda minha, prometo, vou te conquistar.

08/04


Tenho 


Eu tenho fé

Nos baianos do cinema
E no judeu neurótico;
No hardcore de mesmo tema
E no cineasta psicótico;

No artista brasileiro

E no vocalista estrangeiro;
No dramaturgo espanhol
No garoto do futebol;

Tenho fé

No bardo dos palcos
Na rainha reservada
No caminhante do asfalto
E no livro da estrada;

Na Dinamarca

Em Tropicália;
Na rima racional
Na luta racial;

Tenho fé

No presidente do povo
Nos novos de João
No novo cinema de novo
Na tristeza de um refrão;

No mestre inglês

No teatro francês
Na arte independente
Na mulher inteligente

Tenho fé

Na banda americana
Na crença oriental
Na salvação africana
No deputado estadual;

No poeta carioca

E no homem do violão;
No escritor que me provoca
Em meus amigos, meus irmãos.

09/04


Com veneno, com ardil


Nos encontramos finalmente

Escondidos, de repente
Numa noite envolvente
Só nós dois, nós dois somente

Quando veio assim, olhei

Sem querer, me apaixonei
Se queria me amar
Fácil foi me conquistar

E fomos, como homem e mulher

Conhecendo, por descobrir
Amando, vivendo, como se quer
Fomos. Voltei. Tudo pôs-se a ruir

Não me deu chance

Não me falou;
Frieza, vermelha
Me machucou

Penso, pois, assim então

Que me levou, me seduziu;
Enganou o meu coração
Com veneno, com ardil;

Meu abraço, nunca o mesmo

Passa tempo e não esqueço;
Cicatriza o nosso beijo
Ainda assim, te agradeço.

10/04


Meta-poema


Penso enquanto verso

Penso no que versar
Estico a pena e pego
Uma ideia pelo ar

Rimar sobre rimar

Pensar pelo fazer
O verbo, improvisar
O tema, esclarecer

Meta, vira viagem

Língua, faço um aparte
Seja, então, metalinguagem
Hoje, minha obra de arte.

11/04


Média


Preso no meio

Por cima, esmagado
De baixo, ameaça
Coagido, condenado

Três lugares, sem saída

Pra respirar, pra tentar
Sem legado, perspectiva
De ser outro, de crescer, de alcançar

Num dilema, dia a dia a questionar

Numa cena, nem aqui nem acolá
Mundo assim, quem vai mudar
Vida enfim, meu lugar, qual será?

12/04


Nadando


Começa sem som

O corpo vai; perna, pé, braço e mão;
Qual talento, qual dom
Prática, técnica, solidão

Quase como voar

Imerso por entre as águas;
De um tanque pro físico, pensar
Relembrar, esquecer, vomitar as mágoas

Em bolhas de ar de respiração

Mais rápido, mais rápido
A batalha contra o tempo na visão
Num rastro de memórias e cansaço

A pele quente, o corpo cresce

A cada metro, pernada, braçada
Numa reta de 25 em que não se mede
O tamanho da vida na chegada.

13/04


Lamento Dub
A poesia dub

É a voz do mundo sub
A cada grave, etéreo
Uma nova onda, mistério

Lá fora o mundo acontece

Aqui, a gota da chuva é um passo
Imaginado, ouvido,  me aparece
Ao som de Blake, a sombra do seu traço

Me desfaço, me entrego

Você na minha frente, intangível
Num lamento, ao piano, me encarrego
De fazer, neste momento, o impossível. 

14/04


O menino do meio-fio


Um garoto no meio-fio

Sentado, tarde da noite
Encasacado, cara fechada, frio
Longe de casa, herdeiro do açoite

O menino me odeia

Me olha e me odeia
É com raiva e com razão
Que me vê, assim, do chão

Não escolheu, não pôde escolher

E eu por aqui, de carro a correr
O menino e eu, num segundo a diferença
Lado a lado, frente a frente
Posso ouvir o que ele pensa

A pessoa é para o que nasce

Cada um nasce pro que é
Não é justo a distância, classe
Eu sentado aqui, você aí, de pé.

15/04


escolha de Sofia


Bastará o amor?

O querer de Sofia se confunde
Entre o que há
E o que de ser haverá
Um dia por aqui
O outro por aí
Em busca de vida, sozinha
Pelo mundo se vai, se guia
Tudo o que desejo agora
Sem hora
Pra acabar o teu momento
Se entregar, viajar;
Retornar através do tempo.

16/04


Te ver voltar


Noite fria

O vento assovia
E à melancolia
De um canto
Seu encanto 
Se faz lembrar;

A casa vazia

Saudade irradia
Me passa um dia
De silêncio;

E num momento, 

Te faço estar.

A fotografia

Traz alegria
De mesma via
Que vem saudade
E mais vontade
Te ver voltar.

17/04


Em breve (1ª versão)                                                     Em breve (2ª versão)


Chega a hora                                                Chegará a hora

Em breve virá                                              De dizer que vou
Levar-me embora                                         Muito em breve, me virá de fora
Tirar-me de lá                                              Pra saber quem sou;

Me faz um novo                                            Sem sorrisos demais

Me tira o chão;                                             Sem pedir nada mais
Um homem do povo                                      Começar de novo
Serei artesão                                                Ser homem do povo

Criatura, criador                                           À vontade, me dedicar

Completo, eu, por um segundo;                     De cabeça, eu, profundo
Da vida própria, ser motor                            Só a mim para explicar
Fazer do que era sonho, mundo.                    Fazer do sonho ser meu mundo.

18/04


Queria que pudesse me ver agora            Queria que pudesse me ver agora

(2ª VERSÃO)                                                          (1ª VERSÃO)                      

Queria que pudesse me ver agora                      Queria que pudesse me ver agora

Onde cheguei                                                   De pé, debaixo da luz
Por onde vim                                                   No ritmo da fala que me conduz
O que deixei
                                                                       Ao encontro
Entre passos e abraços                                       Do eu comigo mesmo
Pensamentos e pedaços                                     Que seja
Certeza, incertos traços                                    O quiser fazer da minha frente
Amei                                                               Nem passado nem presente
                                                                      Futuro, adiante
Queria que pudesse me ver agora                                  
De pé, em pé, a pé                                          Queria que pudesse me ver agora
Até                                                                 Minha alma governante
Onde vai a trilha                                             Capitão da minha vida
Que me leva à maravilha                                  Em vias de despedida
                                                                      Da longa jornada perdida  
Queria que visse como fui
Como flui                                                         Sou mais que fui
Hoje, o que tenho pra dizer                               Como flui  
                                                                       A imagem do dia de hoje
Sob uma luz, assim, no palco                              
De modo simples, sim, descalço                          A promessa do que vem me leva embora
                                                                        Queria que pudesse me ver agora.
De qualquer forma
Reitero, muito embora
Mais por dentro que por fora
Me repito a toda hora
Queria que pudesse me ver agora.

19/04


Pensando e criando                           Pensando e criando

(1ª versão)                                                                    (2ª versão)

Pensar, criar,                                                 Pensa, pensa, pensa e cria

Pensamento é criação                                     Criatura e pensamento
Criação, consentimento                                  Criação e poesia
Dentro de opinião                                          Cria mundo, meu invento

Ao natural, nada se faz                                    Joga fora opinião

Deitado, são; sozinho, em paz                         Do que vem de outro lado
Me vem o acaso, constrói a cena                      Faz que sim e faz que não
Cria minha questão, me dá problema                Faz que só fica parado

Nem resolver, nem solução;                             Me provoco e te invoco

A responder, inquietação                                 Desafio, te procuro
No caos começa, do caos se tira                       Me incluo, me sufoco
Do caos se pega, no caos termina                     Num vazio, num escuro

Sobrevoando, a habitar                                   Questão: problematizar

Problematizando, manipular;                            Intenção: me responder
Filosofia, conceito em parte,                            Não resolver nem solucionar
Ciência, mundo, criar em arte.                         Pensar, pensar; criar, fazer.

20/04


O tempo e nós                                   tempo e nós

(1ª versão)                                              (2ª versão)

O tempo me leva                                      Chega o tempo

Me leva de volta                                       Chega e me leva
De volta carrega                                       Me leva e me entrega
Carrega e me solta                                    Me entrega um lamento

Me solta no tempo, a observar                   Lamento de vida

Observar paisagem                                   Vida vivida
Paisagem no ar                                         Vivida em paisagem
                                                              Em paisagem distante
No ar de seu tempo, parada em parada      
Parada pra ver, pra ver e ouvir                 Distante um do outro
Pra ver e ouvir, partida e chegada            Outro e um são o mesmo
Partida e chegada, e o tempo a sorrir        São o mesmo pedaço
                                                              O pedaço lançado
Sorrir com o tempo, a se alcançar              Lançado à ventura
Alcançar entre nós                                    Aventura imortal
Entre nós viajar                                       
                                                              Imortal no geral
Viajar, o tempo, sem ter pr'onde ir            Do geral assistindo
Sem ter pr'onde ir, alegria e lamento         Assistindo de um ponto
Lamento e alegria, os dois a se unir           De um ponto a um momento
Os dois a se unir, sob os olhos do tempo.   O momento de nós
                                                              De nós todo o tempo.

21/04


Cante!
Cante

Até o mais alto agudo
Suba a voz, solte tudo
Mãos inquietas
Batidas secretas
Da alma
Balada da calma
Entoe o refrão
Na veia, pressão
Cante em equilíbrio,
Em harmonia
Cante em qualquer lugar
Esta melodia
Sua própria anarquia:
Ainda que errante, adiante,
Cante!

22/04


José e Pilar


Para José Saramago e Pilar del Río


Apaixonam-se

Inspiram-me
Lhes escrevo um poema

Os invejo

Admiro
Lhes faço de tema

Seu amor

Sintonia
Numa cor
De quase magia

José e Pilar se completam

Se conectam
São dois, são um
São eles, só
São.

Por isso lhes escrevo, lhes digo

Por isso lhes conto, em capricho
Que são um casal mui querido
"Encontremo-nos noutro sítio".

23/04


Todo dia


Você levanta pro dia

Cumprimenta, sorriso simpático
A caminho de mais um pedaço de vida
Acordado e feliz, no piloto automático

O mesmo lugar

A mesma gente
O mesmo olhar
Indiferente

Inofensivo

Uma ofensa
Sujeito bicho
Que não pensa

E segue

'Deixa a vida me levar'
Entregue
Ao que vier, ao que passar

Vai passar

De hoje, da hora
Sem chegar
A lugar nenhum
Amanhã, nem depois, nem agora

Digo não, Zeca

Pego o que é meu;
Tô saindo dessa
Quem leva minha vida sou eu.

24/04


Preto Velho


Que estranha forma vem na noite

Se mostra pra mim à distância
Desce o cavalo, dá-lhe o coice
Vem-se o velho, pra mim avança

Traz cachimbo, patuá, chapéu

Chega perto, sem me deixar dizer nada
Levanta  dedo, me mostra o anel
Me mete medo e bota o pé na estrada

Some no escuro o preto

Vai qual fumaça no ar
Se espalha com dor, em segredo
Gargalha seu canto, o pesar.

25/04


Eu e ela


Ela me quer

Como quer uma mulher
Alguém que lhe escreva
Enquanto deseja
Lhe veja como é

Ela me ama

Os dois juntos, na cama
Se pegam, se enxergam
Dividem, carregam
Pensamentos, sonhos, fé

Ela me tem

Mais que ninguém
De dia, ao seu lado
À noite, colado
Unidos assim, unidos até.

26/04


sombra ao meu lado


Uma sombra se cria

Grande, escura, no chão
Ao meu lado caminha
Levantando a questão

Uma dúvida antiga

De verdade feroz
Somos passantes da vida
Ou ela passa por nós?

Deixamos todos na estrada

Família, amigos, amores
Se vão, se esquecem, mais nada
Sem mais prazeres ou dores

Levanta-se a vida

Me cobre na forma de tempo
Cresce e passa corrida
Ou corremos por ela ao relento?

27/04


No escuro do teatro


Poema dedicado à Cia. Hiato de teatro, em especial ao ator Thiago Amaral e a seu pai 


A fumaça divide a cena

Entre silêncio e vontade
Ação e verdade
Ficção? Realidade?
Catarse
Amar-se
Entre querer, entre criar
Entre esquecer, entre lembrar
Entre perder, entre enfrentar
Há um vazio no ar
São as cinzas que cortam o palco
Em vapor, na altura da mente
Percorre o espaço, invisível e intacto
A encenação de todo dia se faz presente.

28/4


A semente do vinho


O sangue embriaga

Por mim, carregado
Aos poucos se entrega
Por mim, depravado

O vinho me leva

Num senso no ar
Me leva daqui
Me joga pra lá

Se faz rico em si

Tão puro, inocente
O líquido, aí
Me planta a semente.

29/04


As chaves de casa


O pé estranha

O chão arranha
Entre partidas e retornos
Cá está tu de novo

E tudo parece o mesmo


Os ouvidos te confundem

O cheiro te engana
Que as lembranças não afundem
Memória levanta e chama

E tudo parece o mesmo


As chaves se parecem

Mas jaz aqui outro lugar
As ausências te aquecem
A velha cena, põe-se a olhar

E tudo parece o mesmo


Enquanto teu desejo

À medida do que almeja
Mistério a decifrar
Vem, verdade, for o que seja
Não é a casa mudada
É tu quem estás a mudar.

30/04


A travessia


Há um rio; corre livre

Separando dois caminhos
Se se encontram, não se sabe
Caminhante, eu sozinho

Passa grande e forte, o rio

Enquanto olho, penso e crio
Me convida ao seu domínio
Faz da água meu destino

Minha força, minha luta

Minha alma desafio
Minha escolha, resoluta
Minha vida nesse rio

'Serei eu', como escrevi um dia

À luz que a nova liberdade irradia
'Convicto, invicto'
Pacífico e nem por isso omisso

Chega a hora da travessia

Deixar pra trás quem já chegou
Uma coragem, inda que tardia
Dentre muitos, dentre tantos, me encontrou

E se antes era partido

E me contava rachado, escondido
Digo 'vem, amor' e 'vá, dinheiro'
Se era incompleto, agora sou inteiro.