Encruzilhada

Encruzilhada

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Uma quase defesa a 'O Lobo de Wall Street'

*texto originalmente publicado no 'Diário do Centro do Mundo'

Uma quase defesa de ‘O Lobo de Wall Street’

Postado em 26 Feb 2014
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Não considerando a inflação das arrecadações antigas, ‘O Lobo de Wall Street’ é a maior bilheteria da carreira de Martin Scorsese – segundo o Hollywood Reporter, recentemente ultrapassou a marca de 300 milhões de dólares em ingressos vendidos. Não que dinheiro importe pra esse artigo. ‘O Lobo…’ também foi indicado nas cinco das principais categorias do Oscar (ator coadjuvante, ator, diretor, roteiro adaptado e filme) além de levar o Globo de Ouro de melhor ator e acumular indicações ao Bafta, aos prêmios dos sindicatos americanos dos roteiristas, produtores e diretores, e por aí vai. Não que prêmios importem para este artigo. O ponto aqui é: até onde vai a responsabilidade do(s) autor(es) com as consequências da obra de arte no mundo real?
Este filme gera reações polarizadas e muita controvérsia. Scorsese retrata – com todos os excessos do modo de vida do retratado – a trajetória de Jordan Belfort, corretor de Wall Street que ascendeu nos anos 90 com um esquema fraudulento, montou uma companhia gigantesca e, eventualmente, acabou pego. E para contar esta história utiliza como protagonista um dos atores mais carismáticos do cinema americano (Leonardo DiCaprio, também produtor do filme e idealizador do projeto). ‘O Lobo…’ é uma montanha russa de sexo, drogas e dinheiro. Nada que Scorsese não tenha feito antes em filmes como ‘Os Bons Companheiros’ e ‘Casino’. De fato, aqui, é como se estivesse apresentando mais um de seus contos mafiosos – talvez com mais sexo, mais drogas e mais dinheiro. Mas os criminosos agora lidam com ações na bolsa de valores. Scorsese e DiCaprio foram criticados por supostamente glamourizar o modo de vida de um golpista que enriqueceu às custas das economias de americanos – em sua maioria – de classe baixa. Após uma das exibições para votantes do Oscar, um roteirista teria gritado na cara de Scorsese que aquilo era ‘nojento e vergonhoso’.
Christina McDowell é filha de um dos antigos sócios de Belfort. Em uma carta aberta publicada no Los Angeles Times, ela conta que chegou a ter de trocar de nome depois de ter sua identidade roubada pelo pai para fazer uma manobra financeira. Christina se endereça ao próprio Jordan, questionando sua nova persona, e acusa os realizadores do filme de glorificarem o comportamento de Belfort e seus companheiros, chamando diretamente a atenção de Scorsese e DiCaprio para o valor da mensagem cultural enviada no projeto.
- Eu queria fazer um filme feroz. O que me levou a fazer esse filme foi o colapso de 2008 e a vontade de retratar o mundo financeiro sem lei – declarou o diretor de 71 anos à Vanity Fair.
Leonardo DiCaprio adota um discurso semelhante em entrevista ao New York Times:
- O que não entenderam é que a razão para fazermos esse filme foi a reação a essas pessoas e a esse mundo. Por isso queríamos fazer o filme, em primeiro lugar.
De fato Scorsese filma como se tudo fosse uma grande festa e cria um mundo atraente. Mas escolha semelhante já não havia sido feita nos já citados ‘Os Bons Companheiros’ e ‘Casino’? E não serão esses (sub)mundos realmente atraentes? Isso é o que alegam Scorsese e DiCaprio, que é justamente essa a intenção, mostrar este universo por dentro. Em diversas entrevistas os dois afirmam que não endossam o comportamento de Belfort e que isso está no filme. Trata-se de um personagem carismático, ou não seria capaz de levar a audiência por uma jornada de três horas de duração sem nos fazer perder o interesse por sua história, mas é um homem de caráter desprezível, ambição desenfreada, egocêntrico ao extremo, dotado de zero senso de culpa ou responsabilidade por seus atos e com traços de psicopatia. E quantos desses não são tipos interessantes de se ver nas telas? Hannibal Lecter, Walter White, Coringa.
O fato de Belfort ser um personagem real e tudo que se passa na tela ter realmente acontecido traz à análise do filme uma maior complexidade. Scorsese e o roteirista Terence Winter deixam de fora as vítimas de Jordan, que só surgem em voz na outra linha do telefone e são mencionadas com desprezo pelos personagens principais. DiCaprio defende-se:
- O que queríamos fazer era mergulhar você na mente de alguém. É um reflexo da verdade. Não acho que eles pensavam nas vítimas. E não acho que os mais corruptos de Wall Street tenham pagado por seus erros ou tido punição apropriada. Então sempre que pensávamos em uma abordagem mais tradicional dizíamos ‘Não, não, vamos ainda mais longe porque é uma representação precisa de como é o mundo deles’ – declarou o ator, aoNY Times.
Como aceitou colaborar com o governo – leia-se delatar seus associados – Jordan ficou na cadeia por 22 meses e foi condenado a restituir 110 milhões de dólares às suas mais de 1500 vítimas. Em outubro do ano passado, promotores federais prestaram queixa de que nos últimos quatro anos o sujeito só teria contribuído com 243 mil para quitar a dívida. E Belfort recebeu cerca de U$1,8 milhões pela publicação de seus dois livros e venda dos direitos de adaptação para o cinema, além de cobrar 24 mil dólares por palestras motivacionais desde 2007 – ele inclusive faz uma ponta no fim do filme, apresentando o Belfort de DiCaprio. Talvez indo de encontro ao que de fato seja sua opinião sobre o verdadeiro ‘lobo’, o ator gravou um vídeo em que defende a brutal sinceridade que Belfort usa para trata de sua própria história e termina dizendo que o considera realmente um brilhante motivador. De fato, Belfort só tem a lucrar com sua história adaptada ao cinema. Sua fama agora foi inflacionada mundialmente e sabemos que hoje em dia, celebridades não precisam passar perto de serem exemplos admiráveis para serem célebres. E apesar de ser um personagem desprezível, no mundo das palestras motivacionais seu cachê certamente está mais valorizado enquanto suas vítimas não sabem quando ele pagará a elas o que deve.
Mas a questão é: Scorsese e DiCaprio tem culpa nisso? ‘O Lobo…’ é um sucesso entre jovens banqueiros. Um artigo do London Evening Standard afirma que o lançamento do filme foi tão esperado entre os funcionários dos bancos de investimentos que as empresas promoveram festas a caráter (tema: anos 90) e sessões privadas. OBusiness Insider publicou um relato sobre como foi assistir ao filme com jovens profissionais de Wall Street. E resumiu tudo em uma palavra: perturbador:
- Há uma linha tênue entre satirizar Wall Street e celebrar o estilo de vida de Belfort. Scorsese poderia ter se esforçado mais para fazer o personagem parecer um vilão. Seria uma pena se, com esse filme, o diretor acidentalmente inspirasse os futuros Jordan Belforts do mundo – escreve o repórter, destacando que a cada carreira de cocaína cheirada pelos personagens o público ia ao delírio.
Lembro-me da estreia de ‘Tropa de Elite’ e toda a controvérsia em torno do filme de José Padilha e do personagem Capitão Nascimento (Wagner Moura). O papel central de Nascimento, que conduz a narrativa através da sua percepção, as cenas violentas e os relatos de que plateias aplaudiam as sequências de tortura praticada por policiais incorruptíveis do BOPE despertaram acusações de que ‘Tropa…’ seria um filme fascista. Trata-se de uma situação similar a de ‘O Lobo…’. Tanto Padilha na direção e roteiro quanto Wagner Moura na interpretação retratam um personagem obscuro, autoritário, violento e à beira de um ataque de nervos, praticamente um sociopata a serviço da lei. O fato de Nascimento ser adotado como herói talvez tenha mais a ver com a sociedade do que de fato com a obra. Como bem dito pelo crítico Pablo Villaça em sua análise ‘em vez de se encarregar de condenar o personagem para o espectador, Scorsese permite que constatemos sozinhos a natureza de Belfort. Sim, com isso, ele inevitavelmente levará muitos a saírem do cinema repletos de admiração pelo que o protagonista conquistou – mas não podemos responsabilizar o diretor pela falha de caráter de certos membros de sua plateia, podemos?’.
Há quem diga que Belfort será o herói que Gordon Gekko (personagem de Michael Douglas em ‘Wall Street – Poder e Cobiça’) foi para geração anterior. Há quem defenda que é o melhor filme de Martin Scorsese nos últimos 20 anos e a maior performance da vida de Leonardo DiCaprio. Há quem diga que ‘O Lobo…’ é um infeliz festival de excessos. E pouco se fala no trabalho de Kyle Chandler, que interpreta o agente federal responsável por perseguir e prender Jordan Belfort. O agente vai pra casa de metrô, vestindo seu terno barato, sem sequer sorrir com o dever cumprido, sem glória. No mundo real, Jordan Belfort está livre, ganhando dinheiro e sem restituir suas vítimas. É possível dizer que ele venceu? Talvez, mas a culpa não é de Scorsese ou de DiCaprio.
E ainda que você discorde de tudo isso, ‘O Lobo de Wall Street’ levanta todas essas questões, proporciona múltiplas análises, gera diversas e controversas opiniões. Só por isso já não será uma obra de arte singular?
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Lucas Gutierrez
Sobre o Autor
Lucas é ator, poeta, escritor e jornalista.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Atolados; ou às vezes a gente tem que ser HÓMI


Atolados; ou às vezes a gente tem que ser HÓMI.




‘Atolamos’. A primeira vez que eu disse foi com um sorriso no rosto, brincando com a possibilidade. Em seguida, percebi que o carro realmente não se movia, nem pra frente e nem pra trás, não importava o quanto eu acelerasse ou mexesse o volante. E aí, veio o sinal. Não sei se tem isso em todos os carros, mas ali estava, no painel do Ford Fusion alugado para o fim de semana, a luz acesa com o ícone de um carro atolado. Uma miniatura da gente agora.
Uma vez constatado o atolamento, a primeira coisa a não se fazer é exatamente o que eu fiz. Acelerar e tentar de novo e de novo, teimoso e teimoso, ignorando o sinal da natureza de que as rodas dianteiras rodam sem sair do lugar, mergulhadas que estão – agora cada vez mais – na lama do estacionamento desta vinícola. Em uma situação como essa, sou uma criança. Fui criado na cidade, mais precisamente em Laranjeiras, Rio de Janeiro, e mais precisamente ainda num apartamento. Não numa casa, não num play, num apartamento. Nunca troquei um pneu, não sei direito onde fica o radiador nem com quanto tempo é preciso trocar o óleo. Sou, muito vergonhosamente, o que se acostumou a chamar de ‘criado-a-leite-com-pera’ – embora seja mais para leite-condensado – e conhecido ainda como ‘cintura-lisa’ ou ‘faixa-branca’. ‘Mete a mão aí’, ela me diz. Eu meto. E besunto minha mão na lama tipo argila abrindo espaço para um dos pneus.
Dois jovens rapazes americanos chegam para ajudar. São funcionários da vinícola, vinte e poucos anos, um mais fortinho/gordinho, outro magricela, ambos com a mesma roupa: calças cáqui e camisas azul xadrez. Nossa primeira tentativa é óbvia: empurrar a frente do carro. Ela engata a ré. E nada. Tentamos do outro lado, empurrar pra frente com a primeira marcha engatada. Nada. E minha mão agora está gelada por causa da lama seca. Afinal, estamos no estado de Nova York e há alguns dias atrás esse chão estava coberto de neve. Joe e Brad saem e retornam com papelões. ‘O carro precisa de uma superfície lisa pra aderir e sair da lama’, Joe diz. Ele não é leite-com-pera. Jogador de futebol na faculdade, deve ter tido aulas de carpintaria no high school e provavelmente é nascido e criado nesta parte mais rural do estado. Parece entender do que fala apesar de ter confirmado que nunca tinha visto isso acontecer antes. Às vezes, eu queria ser como Joe.
Calçamos os pneus dianteiros com os papelões, mas não funciona. O carro não se move, tampouco sobe no papelão. Já de mãos limpas, lembro-me do episódio do Chapolin em que ele ajuda um trio a bordo de um caminhão atolado a atravessar uma fronteira. Se você é fã lembra que pra resolver o problema é preciso uma pedra e um toco de madeira pra fazer uma alavanca. Na falta da pedra, pego outro toco de madeira, dos tantos estirados na frente dos carros do estacionamento. A alavanca fica bonita, uma pra cada roda dianteira. Mas nada acontece, não há espaço suficiente entre o para-lama – nunca um nome tão apropriado – e o chão pra alavanca fazer efeito. Maldito Chapolin. E agora estou cheio de farpas na mão.
‘Vocês tem seguro?’, Brad pergunta. Brad é o tipo magro, tranquilo, um cara legal. Provavelmente curte quadrinhos, ficção científica e Pearl Jam. Em outra vida, poderíamos engatar um bom papo. ‘Sim, cobertura completa’, respondemos. Joe sai para buscar sua caminhonete e volta com uma corda. Brad e ele agora examinam como podem improvisar um reboque sem destruir nosso carro alugado-atolado. Uma peça do porta-malas parece ser a solução. E lá vamos nós. Corda amarrada, Joe puxa a caminhonete, que puxa o Ford Fusion – engatado por ela. Brad vigia pra ver se o carro se despedaça, eu empurro sozinho. E a corda se rompe. ‘Era fraca demais’, Brad atesta.
Me pego num momento imaginando se em uma hora estarei fora dali, problema resolvido, relembrando e comentando toda a situação. É um pensamento que sempre me vem em momentos de crise. Retomo então uma sugestão que tinha vindo à tona mais cedo e acabou esquecida. ‘Vocês tem alguma pá aqui?’. Eles tinham. Duas. Brad e eu cavamos nas rodas dianteiras abrindo um espaço maior, nivelado com os pneus atolados para o carro pegar força e sair do buraco. Nós e Joe nos preparamos para empurrar. A hostess da vinícola, chega para ver como andam as coisas. Joe pede que ela escore os tocos de madeira com o pé, nos apoiando enquanto empurramos o carro pra trás, marcha ré engatada. O carro anda um pouco, mas não o suficiente para desatolar. Tentamos a mesma manobra algumas outras vezes, sem sucesso. A moça nos ajuda em uma delas, mas depois recua. ‘Essas botas são caras’, ela diz, antes de ir embora com o pretexto de ‘atender um telefonema’. Joe e Brad estão frustrados, camisas xadrez pra fora das calças cáqui, agora manchadas. Eu mexo na minha mão, cheia de farpas. Minha calça está rasgada em uma das pernas por conta do esforço de empurrar o carro. Meus sapatos estão afundados na lama. Minha roupa, suja de terra. Numa temperatura de 5 graus, estou suando. ‘Vou ligar para o reboque’, ela me diz, para logo em seguida pegar o celular e o número do seguro. Os rapazes e eu fomos derrotados.
Neste momento, uma voz começa a ecoar na minha cabeça. ‘Estamos atolados, presos aqui, e você preocupado com essas farpinhas na mão? Seja homem. Sua mulher vai chamar um homem de verdade com um caminhão reboque gigantesco pra resolver o problema que você não consegue resolver sozinho’. Apanho então a pá e começo a cavar. Crio mais espaço para a roda dianteira. Faço o mesmo para a roda traseira enquanto Brad cuida do outro lado do carro. ‘Vamos criar um caminho pros pneus, nem que tenhamos que cavar toda essa vaga’, eu digo. É uma sensação especial essa de usar uma pá na terra. Você finca a bicha no chão, reforça o golpe com o pé e depois arrança o maior pedaço de terra possível. E a cada talagada que retiro do gramado me sinto mais forte e confiante. O simples ato físico parece emular um tipo de plantar, construir ao mesmo tempo em que se destrói algo, numa superfície manipulável o bastante para ser destruída e recomposta em sequência cíclica.

Ela desliga o telefone. O reboque já está a caminho. Joe retorna com mais papelões e duas tábuas quadradas de madeira. Cercamos todas as rodas desta vez, tábuas nas rodas dianteiras, papelão nas traseiras. E sem precisarmos da hostess, fincamos as pás para escorar os tocos de madeira que apoiam nossos pés enquanto empurramos o carro. Ela engata a marcha ré. E nós empurramos. Podemos sentir as rodas fazendo o esforço pra sair do buraco, quase na inclinação que nos separa da liberdade. Os pneus também fazem um cheiro de queimado pela fumaça do atrito da borracha com a madeira. Estávamos quase lá, mas o chão vence mais uma vez. Numa última tentativa, ela leva o carro o máximo pra frente que pode. Nós entendemos que podemos guardar forças e só empurrar quando as rodas encontrarem o limite do buraco. Vamos no três. ‘One, two, three’. Eis que conseguimos e o carro sai, glorioso, de ré por cima da mistura de lama com grama à beira do vinhedo. Eu grito, extasiado, alegre como um moleque comemorando um gol no recreio do colégio. Abraço Joe e Brad e comemoramos juntos. ‘Cancela esse reboque porque é assim que se faz!!’, eu grito. Eles riem. Compartilhamos a alegria da vitória juntos, recolhendo os destroços do nosso triunfo. A corda arrebentada, os papelões no chão de lama, as tábuas, os tocos de madeira. Lavo minhas mãos e entro no carro. Estou aliviado e me sinto vitorioso. De alguma forma tosca, acho que sou mais homem porque passei por isso. E um sentimento de aventura ainda ecoa dentro de mim enquanto me pego no banheiro, mais tarde naquela noite, traçando mentalmente as primeiras linhas desse texto enquanto tiro as farpas da minha mão.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A MANHÃ

A  M A N H Ã

o futuro me intriga
me assusta
me ocupa permanentemente no presente;
penso, pergunto
como se fosse o tempo um retrato da semana que vem
como se o caminho não se construísse enquanto caminhar.


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

bem-vindo ao meu mundo - população um

a cada segundo me diminuo
a cada dia me tiro um pedaço
desconstrução em destruição
e este deserto, onde vai dar?
insatisfeito inquieto
as faces da moeda no ar
lançada à sorte de cada vida;

a noite dorme lá fora e só eu existo no mundo
só, eu existo no mundo.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

A evolução do amor de Leonardo, de 1976 em diante


1982. Duas paixões, Bárbara e Maria, loira e morena. Não há memórias de Bárbara. Maria uma vez lhe mostrou que estava usando o sutiã rosa que a mãe dele havia comprado pra ela de presente. Ele não se lembra porque uma menina de 6 anos estava usando sutiã.

1983. Nova escola, amor à primeira vista por Camila. Ele imagina que um menino é o antigo namorado dela de outra escola. E fantasia ser o Zorro e salvá-la dele. No mundo real, eles trocam bilhetinhos. Ela gosta dele.

1984. Luana é a namorada secreta de seu melhor amigo. Eles trocam bilhetinhos. Leonardo fica com ciúmes. Ele gosta dela.

1985. Luana gosta dele agora. E ele gosta dela. Eles dançam juntos em uma festa. Ela lhe dá um beijo no rosto no ‘Verdade ou Consequência’. Ela é a Power Ranger rosa dele.

1986. Ele gosta de Juliana. Eles se beijam e namoram. E ele se apaixona por Maria – uma segunda Maria. Em uma festa, ele termina com Juliana e dança com a segunda Maria.

1987. Segunda Maria gosta dele. E ele gosta dela. Uma noite, depois de um festival da escola, ele espera três horas para caminhar duas quadras e leva-la em casa. Eles se despedem com um beijo no rosto.

1989. Ele está apaixonado por Marcela. No dia 23 de agosto, ele leva uma hora e doze minutos para beijá-la. Ele não sabe o que faz, é o seu primeiro beijo de verdade.

1990. Ele se apaixona pela sua melhor amiga, Sofia. Ela é apaixonada por ele há mais de um ano. No dia 30 de junho, ele demora toda a sessão de ‘O exorcista III’ e mais trinta e quarto minutos para beijá-la no Bob’s do Largo do Machado.

1997. Ele se apaixona por uma colega de trabalho, Maria – uma terceira. E depois de seis anos e meio de relacionamento, no dia 1º de novembro, ele termina o namoro com Sofia. Ela fica devastada.

Ainda 1997. Terceira Maria não gosta dele. Ele fica devastado. E se apaixona por Michelle, metade francesa, atriz, loira.

1998. Michelle volta de uma viagem e termina com ele. E Leonardo volta a se apaixonar pela terceira Maria.

Ainda 1998. Terceira Maria definitivamente não sente nada por ele. No dia 19 de março, em uma festa, ele beija Karla. Vestido vermelho, cabelo curto, preto. Uma mulher, linda. O melhor beijo da vida.

2003. Eles se casam.

2004. E cá estão.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Isso - ou a nota de rodapé da nota de rodapé do Uivo de Allen Ginsberg


Isso
que você está pensando agora
você me paga pela hora
Isso
aí dentro, batendo em revolto, em remanso
pedindo pra sair e sem se levantar
Isso 
o que quiser
e o preço que houver para o querer
Isso
a sua vontade de dizer, gritar
na alvorada do poder, amar
Isso
apertado assim, colado assim, calado assim
e abafado e sagrado e divino
Isso
o banquete dos nobres
o piquete dos pobres
Isso
é você, meu irmão
e sou eu, como não
Isso
é o que quer ser
seja o que for que isso quer dizer.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Laço


Late Night Campaign

Late Night Campaign

Hunt
Let
Pass
Back
Last
To mystery of night you go
As dark as fear can follow
Go
Cut
Burn
Strength
Struggle
The body shredded in pieces at the door
The rotten spread crumbles on the floor
Speak
Run
Kill
Die
Dead.

For all, for ten, for one
For me, oh no, for none.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Minha semana em Las Vegas

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

MINHA SEMANA EM LAS VEGAS



Aterrisso em Las Vegas. Máquinas de jogo cantam no saguão do aeroporto. Esta é uma cidade estranha. Tudo parece falso. Fake? Ao longo de uma avenida vejo hotéis megalômanos, replicando e aludindo do Egito à Paris. As luzes de neon brilham forte anunciando produtos e shows, alguns musicais famosos e uma pilha de espetáculos do Cirque du Soleil, praticamente um pra cada grande hotel (assisti dois realmente fabulosos). A cidade inteira parece um shopping. Definitivamente, não é o meu tipo de lugar. E o que é que eu estou fazendo aqui mesmo? Acompanhando minha trabalhadora esposa na semana do Natal, aproveitando as milhas, a carona e esperando a folga dela para viajarmos pela região.

No saguão do meu hotel ocupa-quarteirão, o MGM Grand, o pop toca alto. E assim é também por todo lado — do hotel e da cidade — com alto-falantes espalhando o clima de boate por aí. No cassino, o americano médio festeja seu tempo livre jogando. Em salas douradas mais sóbrias, os grandes cacifes brincam com a sorte e o dinheiro apostando alto. Devo dizer, não é a primeira vez que entro num cassino. Mas sempre sinto essa energia terrível, pesada. Só fica bonito nos filmes. Mas a classe média americana é o pinto no lixo. E a julgar pela língua portuguesa que escuto com frequência por aqui, a classe média brasileira também adora Vegas. Acredite ou não, esta é a cidade mais visitada dos Estados Unidos.

Na rua, um homem de terno nos oferece um passe para uma boate ou um convite para um ‘clube de cavalheiros’. Carros e outdoors anunciam as melhores casas de striptease. Outros homens com pinta de imigrantes distribuem cartões de prostitutas, autoproclamando-se ‘Orgasmic dealers’ (traficantes de orgasmo) em suas camisetas coloridas. A ficha de Sarah diz que ela cobra apenas 35 dólares. Um casal de noivos recém-casados passa por nós. Casar em Vegas é um programa turístico. Assim como vestir um tubinho coladíssimo (quem se importa com o frio do deserto?), alugar uma limusine e gritar com metade do corpo pra fora do teto solar e uma taça de champanhe na mão.

Come-se bem em Vegas — entenda como quiser. Acabamos jantando no hotel que reproduz Veneza, onde o teto é azul com nuvens brancas, simulando um dia lindo às dez e meia da noite. Bizarro. Também tem uma réplica de um dos canais, com direito a passeio, gondoleiro cantante e tudo. Muito bizarro.

Nos Estados Unidos é raro ter café da manhã incluído na diária. Saudade do Brasil. De manhã a energia do cassino é ainda mais pesada. Vê-se que para algumas pessoas ali ainda não amanheceu. E todo o salão é fechado, sem janelas, criando essa atmosfera de que o tempo não passa. Tempo é dinheiro, right? Minha esposa vai trabalhar acompanhando os preparativos para o UFC e eu me aquieto no quarto. O programa mais procurado em Vegas é pagar uns dólares para ir até o deserto disparar uma metralhadora. O segundo é pagar uns dólares para ir até o deserto derrubar um pedaço de barranco usando uma retroescavadeira. Não, né? Talvez eu pudesse dar uma caminhada por aí pra ver os hotéis-cassino. Humm... não. Ou então pegar a matinê do show do David Copperfield. Pois é, Copperfield está vivo, com a mesma cara dos anos 80 e engordando seus milhões com shows em Vegas. Já eu, estou duro e engordando com o fast food do almoço. Vou não.

Nada me atrai ou me anima a sair do quarto. Durmo. Entro na internet (falam do Brasil, mas num dos melhores hotéis de Las Vegas, o wi-fi é uma glamourosa bosta), acompanho as notícias do Brasil, dou uma lida no ORNITORRINCO (puxa-saco que sou). Decido jogar um pouco de Paciência. Perco uma sequência de partidas. Descubro a opção de reiniciar o mesmo jogo quando perco. Jogo de novo e de novo. Fico bom. Vermelho e preto, vermelho e preto. Minha mente acelera. Sou Rain Man, decifrando as cartas e quebrando a banca. Enxergo as combinações possíveis, quebro recorde depois de recorde do computador. Sou De Niro, todo-poderoso do cassino. Sou Robert Redford comprando uma noite com Demi Moore com uma proposta indecente. Bato os 4000 pontos — é muito pra o que eu tinha quando comecei a jogar. Sou um dos onze homens fazendo a limpa em segredo. É, nos meus 27 anos eu vi trocentos filmes passados em Vegas, então dá um tempo pro meu fetiche.

Chega o dia da luta, 28/12/2013. Tenho uma credencial para acompanhar o evento, vamos lá? Vou. Começo meu dia na arena às 15h. Os caras sabem como fazer o negócio. Acompanho a primeira luta e durante o dia, cresce seriamente a minha crença de que o MMA vai tomar o lugar do boxe como a luta mais popular do mundo. É um esporte moderno, afinado com o que o público quer. Um brasileiro no ringue. Loiro descolorido, ele sai vitorioso pintado de vermelho pelo sangue do adversário. Metade do ginásio grita em português vibrando. Estou entre eles. Outras lutas passam. Na área de imprensa aperto a mão do Mike Tyson. “What’s up, champ?”. Ele sorri pra mim. Duas lindas mulheres — que supostamente se odeiam — entram no octógono para a disputa do cinturão. O ginásio ferve. Eles e elas deliram com as quedas, socos e reviravoltas da luta. Estou excitado, na torcida pela desafiante mais simpática. E ela acaba perdendo pra über-marrenta campeã, não menos charmosa.

Hora da luta principal. A revanche. Já passa de nove da noite, estou acompanhando o UFC há mais de 5 horas. Nunca fiz isso na vida. No dia em que Anderson Silva perdeu o título eu festejava meu casamento e a mudança pra fora do Brasil. Agora estou aqui, diante do octógono. E estou nervoso. Torço muito pra Anderson, apesar da simpatia e simplicidade do adversário americano. O brasileiro vai mal no primeiro round, mas a arena está com ele. No segundo assalto, depois de tentar um chute, ele cai. Penso: ‘quebrou a perna’. E agora, por alguns longos minutos, o evento não tem música alta, clipes, anúncios marcantes pela voz do apresentador, entrevista do repórter com o vencedor. Neste momento, ninguém fala nada. Há um silêncio institucional banhado pela reação do público ao replay bizarro do golpe. “Oh...”, é o que se ouve, alto e claro. A perna de Anderson como uma borracha, quebrando em câmera lenta ao encontrar a defesa do joelho do americano. O octógono está cheio de médicos, gente da organização. Anderson está no chão com muita dor. Sinto-me mal. Estou chocado. Minha mulher está ao meu lado, microfone em punho, câmera pronta, preparada pra entrar no ar a qualquer momento. Digo a ela que vou embora. Caminho da arena até o quarto do hotel pensando que realmente não gosto de Vegas. E que esta cidade talvez reuna, promova e viva do que há de mais essencial e significativo na cultura popular americana: o entretenimento barulhento, a glorificação do dinheiro, o sexo machista-fetichista e a violência. Tudo junto e misturado.

É muito espetáculo pra muito pouca poesia.

Lucas Gutierrez é ator, escritor e jornalista.vttc

*edição: Gabriel Pardal
Originalmente publicado no Ornitorrinco