Encruzilhada

Encruzilhada

Poemas de outubro

01/10

De olhos pra cima e peito pra frente

Anoiteceu
E o céu ainda é claro
No banquete das luzes
Das aves de aço
No traço do tempo
Ao passo da lua;
Dos corpos que se jogam,
Cansaço;
Nos olhos que se escondem,
Trabalho;
Fases do dia
Corrida contínua
Preguiça ou fadiga
A hora ilumina.

02/10

Inferno

Círculos incertos no vazio
Larvas, insetos
No fim da escuridão;
Espera, faminto, o concreto macio
Gigante e sozinho
Anunciação.
Salvação.
Besta no cio
Em busca do feto
Saído daquela prisão;
Olhar fugidio
Vozes voam no teto
Rastejam pelo chão;
Vermelho, arrasta-se o rio
Leva a coroa e o cetro
A algum outro lugar de solidão.

03/10

cartilha

segure firme
aguente o tranco
acuse o golpe
recorra ao santo
proteja o nobre
respeite o banco
não conte o pobre
eleja o branco
se pegar, o bicho corre
e se comer o bicho manco
pode bem ficar de porre
liberar o próprio pranto
aprender como se morre
e retirar-se para um canto.

04/10

Inventário

A ponta
do laço
Do sapato
gasto;
A pegada
apagada
Do cavaleiro
da semana passada;
O prisioneiro
das grades de ouro
O passageiro
o príncipe mouro;
O anel da rua de vidro,
o amor cantado em coro;
O desejo de sempre perdido
um baú de tesouro
em fogo forte derretido.

05/10

homem da madrugada

O homem da madrugada
ouve de longe a chegada
a cavalgada;
Sente solto no ar
Aquilo que está pra mudar;
O cheiro da manhã
O sabor da maré
Os sons do próximo dia
O vento frio no pé;
Pode ver o presente, quase futuro
Tocar o recente, o tempo seguro.

06/10

testamento

Deixo fortuna
Agruras e mágoa
Faço ruína
Madura e pesada
Deixo pedaços
Da vida passada
Cumpro percalços
São parte da estrada
Deixo lamentos
Na curva cantada
Parto sozinho
A caminho do nada.

07/10

O fim do túnel

Na beira do trilho
Às margens do rio
Sem saber pra onde vai
De onde vem
A água, o trem;
Poderá vir do norte
Trazendo-me sorte
Algo de bom, forte
A noite para um dia qualquer;
Corre o curso a leste?
Ao desejo de uma mulher
Um encontro bem-me-quer
Mal-me-quer;
Rumo ao sul
Ao túnel preto, de fundo azul
Cego, ainda confiante
Na luz de longe, lá, adiante.

08/10

Os calos no pé do viajante

A poeira do seu pé
Não me diz nada
De onde veio? Por qual caminho?
O que queria? Andou sozinho?
Pisando em dúvidas
Incerto nos dedos
Duro na ponta
Diante dos medos
Recua, de pé fechado
Jogado, sensível, cansado
Aberto, posicionado
Pronto pra ir, até atrasado
De novo a partir, condicionado
Habituado.

09/10

As manchas que tenho sob meus pés e além são tranças que histórias rompidas detém

Essas manchas no chão
Que serão?
Sobras de uma luta,
Pedaços de paixão?
Escurecem as marcas 
Dia a dia a dia
Em passagem, são mortas
Todos passam, elas ficam
Agarradas ao cimento, em união;
Cicatrizes de um tempo, proteção
Sequer sinto com os pés a escuridão
Dos rastros e restos da imperfeição.

10/10

filho bate à porta

Trancado na porta de trás
Com tudo pela frente
O quintal diminui
Empurra, faz recuar pro fundo
Pro canto, pro fundo do mundo
A casa é fechada
Porta bloqueada
Janela cerrada
E para sair, para fugir
É preciso entrar
E para entrar é preciso lutar
Sangrar, vazar o corpo
Em vermelho escuro profundo
No canto, no fundo, o fundo do mundo.

11/10

De cima do alto

Alto
Mais alto
Tudo alto
Tão longe que a cabeça
Deixa de pesar
Tão grande
Sem mesmo respirar
Alto, alto
Por céu azul limpo
Livre
E mais alto
Mais pássaro que anjo
Mais homem do que santo
Alto e mais alto
Guerreiro do ar
Sobre terra e pensar
Sobre gente
Acima do tentar
Alto e mais alto
Por cima de tudo
Parte de nada.

12/10

bruta força

Esta noite sonhei que corria
Contra o vento, o tempo e tudo
Sonhei que sonhava com ninfas
Espíritos livres do mundo
Deidades numa luta trançada ao redor de mim
Caminhando pelas paredes do meu quarto
Numa brincadeira entre si, correndo de um lado para o outro
Sonhei que dançava até perder as pernas de tão gastas
Até que o teto desabasse sobre a minha cabeça
E eu ria
E dançava, dançava até morrer
Sonhei com mulheres brincando de serem meninas
Rio em noite azul de lua cheia
Noite cheia
Noite bela
Num jogo de água e espelho
Brincadeira infantil
Seduzir com batom vermelho
Um carinho no rosto
De um amor desconhecido
E eu me jogava
e mergulhava
e caminhava
E a água me seguia
Numa dança impossível
Como se fosse eu seu guia
E eu via
A dança do fim do dia
E chovia
Sonhei que voava
Saltava de um penhasco
E voava
Rompia paredes
E caminhava
Contra o vento, contra o tempo, contra tudo
E não estava só
Sonhei com a luta de um homem
Seu drama
A força bruta da luta humana
E de tão lindo, tão lindo
Não sei se o sonho era sonho
Ou se era vida.

13/10

condição do paciente presente

às vezes me preocupo
em não me preocupar
e me desculpo
em procurar ocupação
ou explicação
para explicar
a vontade de fantasiar
à vontade
em fantasia de verdade
e variar vivacidade
variedade de viver
a idade de lidar
com as metades
e mentir o pensamento
pra pensar por um momento
que querer é sentimento.

14/10

Dormir não mais

Fantasmas da noite morta
Caminham entre luz e sombra
E névoa
Por rastros de cobiça e treva
Lânguidos, lúgubres
Embebidos no sangue de uma casa
Entre árvores que andam
Espíritos que dançam
A noite de ontem
E repetem seus caminhos
E refazem seus destinos
Passo a passo no terror
Escravos das horas de sempre
Da negra madrugada rubra
De novo e de novo
Despertos de loucura
Em torno da figura
Morta
Atrás da porta
Jaz o segredo do silêncio
Confinadas lá dentro
Almas de outro tempo
Seduzem
As testemunhas de hoje
E o ar se vai, o som se vai
A cama se desfaz;
Nem querer, nem sonhar, nem dormir
Dormir não mais.

15/10

valsa

A jovem alegria
Uma pequena jóia
Sua voz distante
Na melodia desta valsa
Delicada nas cordas
Enquanto choro
Pensando em não dançar
Haverá algum outro lugar?
Um salão para nós dois
Descalços, na ponta dos pés
Distraídos, desprendidos
Com chance de reencontrar
A valsa de nós dois perdidos.

16/10

Todos os lados do seu mundo

Sua caixa
basta
Se larga o bastante
para você
Vasta
à medida de viver
E conhecer
o relevante
Com o desafiante
do outro lado da faixa
E você, hesitante
de guarda baixa
Sabendo que a verdade algum dia
Se encaixa.

17/10

Os dois, ao sol, no fim do tempo

Lado a lado
Não se tocam
Pouco falam

Ele esconde os olhos
Ela mostra as lágrimas
Ele cinzento, frio
Ela de vermelho na pele

Sentados diante do rio
Abaixo do sol
De frente pro fim

Feridas se misturam
No corpo e mais fundo
Para onde irão daqui?

Cada um com seu caminho
Sempre com outro em si
Sempre lembrando do fim.

18/10

pérola

Encantos de acordes rasgados
Vocais rugidos do fundo da garganta
O pranto da juventude
O grito de liberdade
Libertem-me!
Coragem que se agarra
Por um fio, com uma mão
Façam bandeiras de amarras
Vejam a evolução
Lançado no chão
Com sangue nos olhos
E fúria nos traços
Exatos
De um rosto alucinado.

19/10

professor

para Gabriel

O professor vê o brilho
de coisas simples do dia
cães brincando no parque
uma caminhada na beira do rio
falando de lá 

Deitado na grama ensolarada
com a alegria
e o sorriso de garoto que conserva em si,
o professor preguiça na manhã fria
e levanta ao som de Fela Kuti
quase dança sentado no beat do jazz

O professor respira música
e vive para ela
e faz de pensamentos e palavras
mais que voz
sua janela
e se já foi guitarra
o professor hoje é baixo
no groove, na classe
ainda que às vezes
no fim do dia
também seja bateria

O professor é o melhor amigo do silêncio
mas não deixa de lutar
acreditar
e mudar para maior
pois o professor também aprende
e se um dia marcava espaços
hoje se rende ao calor dos abraços

O professor não grita, não sobe em mesa
nem bate no peito
não é euforia
mas sente, sente tudo
como eu
pois ao me ensinar
também fez de mim um pouco seu

O professor me ensinou
me protegeu
me preparou
tomou os golpes que eram meus
é um quinto de nós cinco
e a terça parte de mim.

20/10

espera

Esperando
Por que espera?
Não esperamos todos
Por algo por vir
Pois o amanhã é sempre escuro
Embora haja limites ao ter
Não os há para o querer
E o ansiar
Algo a mais viver
Algum dia será o bastante?
Haverá o bastante?
Aguardemos
E aprenderemos enquanto esperamos
E esperamos para aprender
E aprendemos a esperar.

21/10

jornada da nascente

O filho do desejo
Anuncia sua viagem em silêncio
Na velocidade de um lampejo
Cobiça acima o topo, o aumento
Rasteja pela margem da rua
Beirando a fronteira do tempo
Alcança o tamanho da lua
Move-se na batida do vento
Correrá este ser ao encontro
Algum dia, deste aqui presente
Implacável esperar, pronto
O pedaço que faltava pra torrente.

22/10

dia em que você me disse não

Suas palavras andam num trilho
Um trem que vem na minha direção
Sem aviso viram dedo no gatilho
De uma bala é feita minha escuridão

Enquanto meu ser, roubado de vida
Derrete derramado pelo chão
A carne aberta, ferida
Ainda tem a marca da tua sua mão

O espaço que abriu no peito morto
Tão quando me arrancou o coração
As marcas que deixou pelo meu corpo
No dia em que você me disse não.

23/10

fardo por baixo da pele

Que haverá com o sentimento
Que não onde quer que se vá?
Será isso quem de fato se é
E no fundo, no fundo
Para sempre será?

O que se veste sob a roupa
E sob a pele
Que de dentro do corpo
Se revele
Carregado por muito
Existido desde tudo
Uma parte do todo
Sempre aberta
E alerta

Um cheiro que não se tira
Mancha que não se limpa
A triste essência de ser
Enfim
No fim de andar e crescer e mudar
Assim

Um gosto presente na boca
Nem doce, nem amargo
Nem salgado
Só o mesmo
Fardo
Costurado, carregado no bolso
Pesando pesado
E um dia, como de cansado em desgosto
Vive suportável suportado.

24/10

Canto do outono

A doce melancolia
Do vento fino de outubro
Traz a manhã fria
O fim de tarde de céu rubro

Minha árvore se esvazia
À sombra do riso do sol cansado
O inverno se anuncia
Cavalga até nós a passo largo

E assim como persiste a alegria
Virá o tempo lento, branco-amargo
Cantando minha humilde melodia
No tom das cores do lamento que já trago.

25/10

Soltos nas mãos do vento

E se um dia conseguíssemos voar
Como poderíamos pousar?
No dia em que eu cair
Você vai me segurar?
No dia em que voarmos
Pra onde vamos?
No dia em que cairmos
Nos abraçamos
Sozinhos no ar
Sobre algum lugar
Amaremos
Tanto quanto o vento nos deixar.

26/10

Retrovisor

Por trás da minha trilha
há história
Muito embora vazia
seja a casa da glória

Neste corpo que expressa fantasia
no fim do dia
Guerrilha no céu de cimento
é a vida que pulsa por dentro

O segredo da alegoria
correrá no sangue as veias da poesia?
Em versos de pouca alegria
explodem verdades milhares.

27/10

Canto da noite do passado

Vozes do além-tempo
Invadem o escuro do templo
No fundo do sentimento
A luz das velas desta noite
Chama por feitos
Pecados
Passados
O ritual ancestral
A paz
Do canto celestial
Vozes do além-tempo
Costuram esse momento
A alma elevada no centro
O fogo é seu elemento.

28/10

Vamos à merda

Por entre suas pernas
guerras
as trevas da vida na terra
no corpo
de quem lhe renega
e rejeita
a receita que lhe desapega
à mesa
a letra carrega
encerra a discussão dos séculos
entrega
a mensagem por entre suas pernas
merda
vamos à guerra.

29/10

Teu sangue escorre fino

Não pedi que morresse por mim
E nasci mesmo assim
Fodido contra a vontade
De vir até aqui
E sua verdade 
Transborda vaidade
A mensagem
Corrompe
A paisagem
E as vantagens
De ser um dos teus
Dos homens de deus
Cordeiro no mundo dos meus.

30/10

dança do fim da noite

De dentro das sombras do fim de um sonho
Espero por um trem
Que me leve em suas luzes
Cruzes deixadas pra trás
Danças e sinais
Caminhando e caindo
No escuro
Enxergando de longe
O futuro
Ruas destruídas
Pelas batidas do som
Sentidas no peito
Paredes em ruínas, teto incinerado
E todos nós, lado a lado
Dançando no fogo, na água, na luz
Até o fim da noite.

31/10

homem mau

Uma vida inteira de chuva
Com o peso sobre as costas
Não se pode ver o céu
Ou o que quer que haja além do papel

E então fui ao inferno
Fazer meu destino
Munido de talento e chapéu

Assino meu caminho ao sul
Com pedras de cristal azul
Comando a viagem de descida
Neste corpo desgovernado
Punido, mal-tratado
Apagado

Mas ao fim do dia, sou um homem
E você lembrará do meu nome.