Encruzilhada

Encruzilhada

Poemas de dezembro

01/12

e você acorda sem lembrar do que sonhou
e levanta mesmo assim
para o mundo, e adiante
homem de sorte que é
não se importa em dançar sozinho
a caminho do dia de hoje
pois ninguém mais pode ouvir essa música;
mas enquanto houver som
e enquanto houver vida
haverá música
haverá sorte
haverá sonho
ainda que no vazio de lembrar
não quero aprender a viver sem sonhar.

02/12

Nossa cor de sangue

O sangue é mais negro que vermelho
Vinho, vestido de linho
Na deusa que me rouba o ar
Com o fogo de seu ventre
Despida, desnuda, diz-me 'entre'
E queimamos juntos
Até derretermos
Nossas peles sobre o lençol
O sangue negro escorrendo para o chão
O porão do corpo
Abandonado, morto
Ao seu próprio prazer.

03/12

Os abraços

O abraço é a materialização humana da esperança
Abraço de mãe, de pai
De filho, de irmão
Abraço de amigo ou até de estranho
Abraço de amor
Abraço é sempre amor, algum tipo de amor
De família
De outro ser humano
O abraço é o encontro apertado
De dois polos dos mais poderosos
Dois núcleos de força inestimável
Coração humano
Sem a distância reservada do aperto de mão
Sem o gosto do beijo
O abraço faz sentir o seu sabor no peito
E depois no resto deste corpo
Uma troca de calor
Um contato puro na verdade de um momento
Abraço nunca carece de sentimento
E estende os braços
Rende armas, baixa escudos
Abre o centro e o fundo
Do ser
Um encaixe perfeito
Uma tranca generosa
Dois numa trança
Um apoio para a cabeça
Um monumento à esperança.

04/12

Canto do fim do mundo

Silêncio com mar de fundo
Trilha sonora e história do mundo
As águas se voltam contra tudo
E a natureza reina sobre o fruto

A sorte final para o justo
É comum e igual à do injusto
O mesmo quadro do futuro
Desenhado em todos os lados do muro

Então pra que se importar?
Para ver o quão longe se pode chegar
E ainda ouvir o barulho do mar
Em paz, no litoral deste nosso caminhar.

05/12

Remember the rain

When your body notices the chain
And all seems to be done in vain
At the end of the day
When things feel the same
Remember the rain

For life itself also cries
While the hurting chest replies
Drowned out in its pain
With hearts in flame
Remember the rain

No one more to blame
Sitting on the last train
You shall break off the game
And hold on to your dame
Remember the rain.

06/12

Canto de dias e noites brancas

a caminho de casa
estou acordado
surpreso com os pelos no meu rosto
estendo minha asa
e voo com gosto
sobre a cidade sorridente
contente
vejo com o vento nos olhos
a cor do meu povo
e o calor do novo
me derrete do ar
e me joga direto neste mar
branco, de volta no dia santo
à noite adorar.

07/12

ЯOЯЯIM

Who is this guy
Looking me in the eye?
Will I ever find out
What he's all about?

Should I tell him what I know?
All those places I want him to go;
The path not to follow
The high hope for tomorrow;

Will he ever understand
What he has in his hands?
This man often smiles back at me
I think he knows who he's supposed to be

And so he is, and so I do
And so it is, and so it's true.

08/12

Dia branco

Sou menino
Brincando no branco
Caminhando no escorregadio
Como se tomando banho de chuva
Pela primeira vez

Sou menino
Com floco de gelo na ponta do nariz
Sorriso molhado
No gelado despertar desta manhã
Com frio no rosto
E calor no peito

Sou menino
Vendo o céu nublado em pedacinhos
Caindo suave pelo ar
Derretendo melancólico no chão.

09/12

tormenta

o frio do toque da sua mão
faz a tempestade dentro de mim
a ressaca do sangue
a chuva no rosto
no peito, o trovão
e navegando na tormenta
minha paixão
comandante de um navio à deriva,
a alma do meu coração
consumida na correnteza
num mar escuro, inseguro
afogada na certeza do futuro
o furo no fundo do barco
destino, mergulho, naufrágio.

10/12

consciência do coletivo

Quantos aqui sonharam nesta noite?
E quantos ainda dormem de pé?
E quantos pra sempre dormirão?
Quantos neste dia amarão?
E quais terão suas vidas mudadas pra sempre?
Quais seguirão?
E quantos passarão como mais um dia?
Todos sim, todos não
Todos aqui e todos em outro lugar
Onde?
Todos haverão
De ser um mesmo
Um dia
Amanhã ou depois
Ou quem sabe quando
E quem sabe quantos?

11/12

Um outro de ti

E se mais de um de você
De mim, talvez de todos nós
Houvesse por aí?
Sendo você, vivendo em outra vida
Com outro nome, mas você
Em outra parte deste mundo, mas você
Parte de outra família
Amante de outra mulher, mas você;
E um dia, quem sabe,
Encontrar-se consigo mesmo
Numa esquina qualquer
Por uma chance do destino
E conhecer-se, descobrir-se
E ver-se em outro corpo, outro ser
Ou encontrar um amado perdido
Uma vez mais, numa névoa de memória
Em realidade;
E saber que quando se morre, ainda se vive
Para um dia morrer outra vez.

12/12

vida viaja

uma viagem de vida
ou uma vida viagem;
retrato da eterna despedida
canto de uma sempre paisagem

viver em passagem
nesta história concebida;
à beira, beirando a margem
a viagem de uma vida
numa vida que é viagem.

13/12

beleza

O que faz a beleza?
A harmonia de traços da natureza?
O momento em que os passos do tempo
Alcançam no enfim
Um retrato imitado
Busca incansável;
A etérea cor do espírito,
Indecifrável é o amor
Pelas formas de um rosto
E as fórmulas do corpo
Normas para o gosto da alma
Na calma, escolher:
O que faz a beleza?
Poderá um só responder?

14/12

monolito

Há um conflito.
Agudo é o grito
do corte aflito;
A morte é mito
rico em sorte,
o maldito abandonado
e ainda forte;
Encanto perpétuo não dito
repito:
pra sempre o rito,
a dança em barco de granito,
o fardo no espaço infinito.

15/12

caminhante da triste figura

O caminhante desta noite delira
Desfaz-se em fantasia
Embriagado de calor
Oh, triste figura
Se move na escura presença do furor
Fulgura a promessa de amor
Engano.
Teu plano derrete
Empoça em volta de ti e reflete
A maquete de um pequeno projeto de vida
E a noite, caminhante
Te envolve densa, alucinante
E chama o fim de sempre, a solidão
Conforto do vazio pleno, escuridão.

16/12

Eu não senso

Chove branco no banco
E não para de cair
Um sorriso no chão
Uma lágrima no céu
Felicidade de papel
Com chama feita de açúcar;
Enrolado na coberta
A casa é sua,
Salão iluminado de saudade
Vontade que não cabe no corpo
Transborda pelos dedos
Medos numa alegoria
A alegria deste dia
Lida por uma alma vazia.

17/12

Canto do amigo adormecido

Um salve pela amizade que não morre
Esta que desperta de longo adormecer
Não por ocasião, por opção
Escolha atrasada de dizer
Que me reconheço em você;

Brindo à retomada desses laços
À companhia desses passos
E quanto a todos os abraços
Perdidos no passado não vivido
Já os sinto, todos, tantos cá comigo;

Seremos de novo, caro amigo
A amizade acordada aqui descrita
Retomada já está e jaz bonita.

18/12

Canto da beira da estrada

Gatos roubados
Na beira da estrada numerada
Pés cansados;

De cima da calçada
Vê-se o mundo
Passar
Derreter diante do olhar
Com velhas cicatrizes
Queimando
Lembrando outro lugar
Sangrando o velho sonhar;

A ponta da sola do pé em frangalhos
Caminhar, caminhar, caminhar

19/12

Seguir

Sigo sol
Contigo, sigo rei
Rendido
Ao tempo que fora da lei
Ruindo por entre pedras de sal
Tão frágil que nem sei
Pra onde vou;

Sigo farol
Comigo e contigo
Bem-vindo no beijo o refrão
Unido e bandido da fé
Sentido e deitado no chão
Meu amor,
Quanta dor, quanta cor, que visão.

20/12

As consequências

Hoje me deixo perder
Pender
Pro lado que me levar
À vontade do dia querer;

O verbo infinitivo
Indefine o escolhido
Encoraja o desolado
Faz vago o expressivo
E geral o destemido;

Mas que outro calor

No sabor da explosão?
A visão do horror,
O vigor da paixão?
A ilusão do amor
É amar a ilusão.

21/12

Quero não

ê, moleira!
quer sair, quer fazer?
quero não
ô, leseira,
vem pra cá, vai pra lá?
vou não
ah, bobeira,
sai daí, vamo daqui!
saio não, vamo não
eita, preguiceira
nem fala, nem faz
nem menos, nem mais
não, nem
quero não, bem.

22/12

Sobrevoo

Esta noite se atravessa
O deserto escuro do proibido
E nós, como peixes
No fundo do mar
Feixes de possibilidades
Correntes para fugir
Seguindo as aparentes,
Cordas estendidas
Até que esgotadas
Rompidas
Decididas e escolhidas
Por ninguém
Sobras, migalhas
Restos do além.

23/12

Viagem na beira da asa

Asa.
Avoa, asa.
Rasante e rasa.
Brilhante, brava
Passa e me leva contigo, asa
Queimando em brasa
Asa de fogo, avoa e vai-te embora
Avoa e some
Do reino do homem
Avoa pra longe, asa
Avoa de volta pra casa.

24/12

Noite não

Esta noite chega sem espera
Pudera
Estamos longe;

Esta noite não existe neste ano
Escrevo de uma outra dimensão
Não há fala, não há plano
Não há casa;
Hora passa, noite vaga, noite não
Não. Este ano esse é o refrão.
Não.

25/12

poeta é um canalha

Exausto das palavras
Ausente de sentidos
O poeta falha
Preso na batalha
de significar;
É, pois, um canalha
Vivendo de enganar
Sugado num buraco do vazio
Esperando
O sol se abrir no seio do fastio
Um novo mundo
Um novo tempo
Um novo homem.

26/12

Mudo em silêncio

Sonho secreto
Com beijos perversos
Em lábios discretos
Diversos;
Noite quente
Alçada a mente à queda
No precipício do suplício
E a principiar
A mudança do olhar
Tudo ao mesmo tempo em silêncio.

27/12

salto

Lance-me às alturas
Pronto para morrer
Pela ânsia de viver mais
A liberdade dos sinais
Vitais para experimentar
O senso de cair no ar
Desmoronar no vão
Entre o ser e o embrião
de um novo ser
Dotado do poder
da escolha, da ciência,
da memória da experiência.

28/12

luta

Onde deveríamos estar?
Marcados de sangue
Cobertos de sangue
Manchados, dominados
De olhos abertos
ou apagados
Amados ou condenados da multidão
O chamado é um clarão:
A solidez de um lugar de pé é só
qual solidão de um lugar no chão.

29/12

movimento

Estamos em movimento
de salto em salto
ato em ato
contra o vento
contra o tempo;
rugindo e chorando
sofrendo e lutando, lutando
parados sem direção
tudo é rápido demais
correndo no sentimento
pra sempre não é o bastante;
tentando, tentando, tentando
passo a passo, momento a momento
chegando, mais perto, chegando
de lugar nenhum, em movimento.

30/12

Perto do fim

Quase hora de ir embora

e a demora chora

o fim

e o nascer

pois terminar não é morrer.

31/12

Canto Último

o poeta corre
o homem dorme.

e pra que poesia?
uma por dia
por um dia 
todos os dias a alegria
de ser criador
escritor de si mesmo
em versos modestos
e pretensos 
intensos
versos imensos
do tamanho que quiseres;
abraços da liberdade
da palavra
poesia para viver
dia a dia
pintar e escrever
a fantasia
e lembrar, e dizer
a melodia
dos verbos
dos nomes
dos fatos
retratos
dos dias desta vida
das vidas deste ano
cantos da madrugada
solitárias noites passadas
esperançoso futuro
luminoso além deste muro;
o salto
o voo
a arte
a poesia do fim do dia.

o homem corre
o poeta agora dorme.