Encruzilhada

Encruzilhada

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Amy e Nina




Esta semana assisti dois documentários focados em grandes mulheres da música.
Em ‘What Happened, Miss Simone?’, uma produção Netflix, a diretora Liz Garbus traça um retrato de Nina Simone, nascida Eunice Waymon em 1933, numa Carolina do Norte segregada. O filme da Srta. Garbus termina sendo uma peça correta, que busca capturar a lenda da artista sem desviar das polêmicas, mas tampouco ousa ou provoca em seu formato.

O grande trunfo talvez seja a participação de Lisa Simone, filha de Nina – que também assina como produtora executiva – e que possui, como uma amiga definiu, uma lucidez perturbadora. Lisa serve como o pedaço de mundo real em que todas as versões de Nina Simone se encontram. A ativista, a solitária, a destemida, a esposa que apanhava do marido, a mãe que batia na filha, a doente, a dona de um talento extraordinário.

No fim das contas, ‘What happened, Miss Simone?’ serve como uma boa introdução à figura da artista, mas em termos de linguagem acaba parecendo um especial de TV, o que, se considerarmos o selo Netflix, não deixa de ser a verdade. No entanto, é bom deixar claro que a voz, o piano e a presença de Nina Simone são hipnotizantes o suficiente para sobrevalorizar qualquer documentário genérico.




Pesquisando para esse post descobri que existe um documentário francês – feito pra TV –, de 1992, e disponível no You Tube e no Vimeo.

Entretanto, o documentário que me deixou de queixo caído foi ‘Amy’, de Asif Kapadia, mesmo diretor de ‘Senna’.

Com um material que vai de imagens caseiras e do começo de carreira às múltiplas aparições públicas, cenas de bastidores e momentos capturados por paparazzi, o Sr. Kapadia monta uma narrativa trágica que desmitifica a artista ao mesmo tempo em que reforça o valor e o poder de suas qualidades artísticas.

‘Amy’ já começa com uma sequência muito bem escolhida onde, aos 15 anos, ela canta ‘parabéns pra você’ com as amigas Juliette e Lauren até que sua voz e sua personalidade captam a atenção da câmera, revelando a construção síntese do filme: uma menina mulher vulnerável, sensível e com um talento nato para a música; ou, como repetido mais de uma vez no documentário, uma alma velha no corpo de uma jovem.




Em seu comentário sobre a produção, o crítico britânico Mark Kermode fala sobre a opção do Sr. Kapadia em usar entrevistas gravadas em áudio em vez de filmadas, como num programa de rádio, destacando a intimidade gerada pela ausência de uma câmera no momento da conversa. A força dos depoimentos de Nick Shymansky (melhor amigo e primeiro empresário) e das amigas Juliette e Lauren reforçam o poder desta escolha.

Sem créditos de roteiro, o filme é apresentado como a história de Amy por suas próprias palavras, e foca não só em sua trajetória, mas também – ou talvez até mais – no seu trabalho, no seu talento, esmiuçando seu processo criativo, como quando as letras surgem na tela enquanto as músicas tocam, sublinhando como determinado ecoou em sua arte.

É incrível ainda como a edição de Chris King e a direção de Kapadia conseguem dizer tanto, levantar tantas questões e comover o espectador sem apelar ou sem, de fato, falar. Ver Amy perseguida por um batalhão de fotógrafos ou como motivo de chacota nos mesmos programas de TV em que ela fora louvada anos antes já dizem o bastante sobre nós e o mundo que construímos.

Algumas cenas são tão bem escolhidas e encaixadas que, por um momento, quase esqueci que se tratava de um documentário. O olhar ‘de dentro’ é tão poderoso que parece que estamos assistindo uma representação da cena em vez do registro real, como quando Amy entra pra tocar para os executivos da gravadora ou quando ela confronta seu pai por trazer uma equipe de TV de seu próprio reality show (!) para o refúgio dela, em Santa Lucia. Nesse sentido, a obra de Kapadia é quase como um registro definitivo, de modo que penso ser impossível alguém reencenar esses momentos ou essa história com mais força do que a verdade capturada aqui.
Bom notar ainda como o filme instiga, investiga, sublinha os ‘avisos’ da tragédia que se construía, mas não aponta dedos, não escolhe culpados e nem absolve as escolhas da própria protagonista.

No fim vemos a transformação de Amy, uma garota de origem judaica de Londres, de jovem cantora e compositora com uma voz única a um fenômeno da música, e testemunhamos como ela vai cedendo e perdendo controle sobre sua carreira, seu trabalho e, consequentemente, sua vida.

Resta a tragédia de uma jovem vulnerável e a eternidade de seu talento.

* ‘Amy’ ainda não tem previsão de estreia no Brasil. Distribuidoras, mexam-se!




terça-feira, 14 de julho de 2015

'A Gangue' e os garotos perdidos da Ucrânia

‘A GANGUE’ E OS GAROTOS PERDIDOS DA UCRÂNIA


‘A Gangue’ intriga já de cara. 

Na entrada da sala, assim como no início dos créditos, há um aviso: este filme é todo em linguagem de sinais, não há tradução ou legendas. A partir daí acompanhamos a chegada de um jovem a uma escola interna para surdos, onde ele é apresentado e integrado a um sistema de violência, roubo e prostituição.
Os jovens de ‘A Gangue’ são como uma versão marginal dos garotos perdidos das histórias do Peter Pan, vivendo numa Terra do Nunca da Ucrânia, decadente e abandonada, onde os adultos quase nunca estão presentes. E quando estão, aparecem como agentes da corrupção.  
O uso exclusivo da linguagem de sinais não só reforça a ideia dos códigos próprios que esta tribo possui, mas ainda provoca uma relação singular do expectador com o silêncio. O estreante em longas Miroslav Slaboshpitsky (que também assina o roteiro) não usa trilha sonora e faz uma rica captação de som ambiente, o que resulta num daqueles trabalhos em que menos é mais. Em determinados momentos, o som de um caminhão dando ré, do vidro se quebrando ou de um gemido de dor atingem o expectador com muito mais força do que se amplificados ou conduzidos por uma trilha.


Composto de apenas 34 tomadas, em que longos planos-sequências nos conduzem pelos ambientes dos jovens, e onde atores e cenários são sempre filmados de frente e em ângulo aberto, ‘A Gangue’ possui um realismo que, tanto em forma como em conteúdo, mantém um parentesco com outras obras recentes do leste europeu. Mas ainda que seja cru e às vezes ultraviolento, também me lembrou um pouco o trabalho dos Irmãos Dardenne (‘A criança’, ‘O garoto da bicicleta’, ‘Dois dias, uma noite’), no cuidado especial com determinados enquadramentos e no uso das cores (aqui, predominantemente o azul).  
Premiado em Cannes e na Mostra de SP em 2014, ‘A Gangue’ foi lançado comercialmente no Brasil em maio deste ano, mas não parece ter feito muito barulho por estas terras. Uma pena. Pois com uma série de sequências chocantes, mas nem por isso menos memoráveis, este é um dos filmes mais intrigantes, instigantes e perturbadores que eu vi nos últimos tempos.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Armas, cartazes e tiroteios


ARMAS, CARTAZES E TIROTEIOS

Há alguns meses, percebi quantos cartazes nos metrôs e cinemas de Nova York traziam personagens armados. Comecei a registrar esses cartazes, sem saber direito com que finalidade.

O atentado de Charleston, na semana passada, onde nove pessoas foram assassinadas numa histórica igreja negra, me deu o que seria um ‘gancho jornalístico’ para falar do assunto ‘armas nos Estados Unidos’.

Mateus Pichonelli escreveu na Carta Capital um interessante artigo comparando as semelhanças ideológicas entre o ultra-conservador brasileiro e o estadunidense e suas distinções no que diz respeito ao acesso a armas. “A diferença (…) é que (nos EUA) basta atravessar a rua para comprar uma arma com nota fiscal”.

Pelos números de assassinatos por armas de fogo dá pra ver que a situação no Brasil é muito mais delicada. Segundo pesquisa da ONU publicada em 2012 com dados coletados entre 2004 e 2010, o Brasil é o 10º na proporção por 100 mil habitantes, batendo perto de 20. Os EUA chegam a 3,2 (26ª posição), mas no time dos ricos disparam na frente de países como Austrália (0,2), Noruega (0,1) e o vizinho Canadá (0,5). Vale dizer ainda que Porto Rico, território estadunidense, é contado à parte e tem um número alto, similar ao do Brasil.
O dado que mais me impressiona é o de que, tendo menos de 5% da população do planeta, os Estados Unidos detém entre 35-50% das armas de porte civil no mundo. São 88 armas para cada 100 pessoas no país.

É verdade, no entanto, que a porcentagem de lares e indivíduos com armas nos EUA é menor atualmente do que há 20 anos (32% e 21% em 2010 contra 46% e 29% em 1990, segundo estudo publicado pela BBC).

Mas dados os números, vamos à opinião. Ou melhor, a impressão. 
Ainda que venha de um país que tem sua própria cultura de armas, fiquei chocado com o que já vi no tempo em que vivo por aqui. A segunda emenda à Constituição dos Estados Unidos, datada de 1791, garante a todo cidadão o direito de possuir armas. 

Em Las Vegas, um dos ‘passeios’ mais vendidos é o que oferece a chance de ir a um stand de tiro no meio do deserto disparar uma metralhadora. Um amigo me relatou algo parecido no estado do Colorado. No Havaí esse tipo de programa é anunciado na rua. 

Chegando ao sul (região que tem todo um histórico de conservadorismo, racismo e culto às armas, e onde fica a histórica Charleston), pode-se observar outdoors nas estradas anunciando e promovendo a compra de pistolas, rifles e munição. Em todo o país há um adesivo na porta dos bares, restaurantes e estabelecimentos privados em geral, onde se lê que não é permitido o porte de armas na propriedade.

E como não poderia deixar de ser, a produção audiovisual é reflexo de toda essa cultura. Digite ‘movie guns’ e você vai encontrar uma seleção de listas com os melhores filmes de armas, as armas mais icônicas do cinema, uma lista do wikipedia de ‘gatas com armas’… 
Já o site Thumbs and Ammo altera cenas e fotos de filmes, substituindo revólveres e metralhadoras por um joinha.   

Mesmo em Nova York, cenário de muitas dessas produções, mas uma cidade com grandes restrições à compra, venda e porte de armas, e onde essas mesmas restrições são vistas como um passo fundamental no processo que reduziu drasticamente a criminalidade da cidade, ainda que só nas paredes, elas estão por toda a parte.