Encruzilhada

Encruzilhada

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Das repetições e variações

Viagem quando viajar
Caminhar em caminho caminhado
Sonhando um sonho, sonhar
Amando amar alguém amado

Procurando ainda é procurado
Perder perdendo-se no perdido 
Chorar nunca chorado
Esquecer se esquecido

Pedir pedindo pedido 
Terminado, terminando ou para terminar 
Sentindo o sentido 
Beijado beijo, beijando, beijar e e beijar 

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A estrada

Me gusta la estrada
Sempre crescimento
Seu gosto, sua cara
A caminho, em movimento
Curva por curva na estrada
Até chegar, curva por vez
E descobrir n'algum lugar
A próxima reta da jornada

A estrada é essa vida
Vida nossa partida
Pudera eu como estrada existir
E sendo, poder estar
Tanto aqui como aí

Mas a estrada nos separa
E entre as serras e praias e mar
E as estradas de nós todos juntos
Vemos que ela sempre esteve lá

A estrada do pai, caixeiro-viajante
E da mãe e dos filhos de fim de semana
Do mais velho, o primeiro da fila adiante
Do segundo, sozinho, à sua maneira
Do mais novo, o caçula
Aluno de todos
Colecionador da vida inteira

Navegantes, passageiros
Queria vocês aqui
De chegada em chegada;
Seguindo nosso caminho, sigo sozinho
Nessa história, nessa vida
Nessa estrada.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Texto meu no DCM: Os Dardenne, o Brasil e o voto

Quem não está de um lado está de outro: os Dardennes, o Brasil e o voto

Postado em 09 out 2014
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Impedido de votar por morar nos Estados Unidos e manter o título de eleitor no Rio de Janeiro, me enfiei numa sala escura no último domingo. Por ocasião do Festival de Cinema de Nova York, consegui pegar uma concorrida sessão de ‘Dois dias, uma noite’, novo filme dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne.
Apresentada pelos próprios diretores e pela protagonista, Marion Cotillard, a exibição me lavou a alma e me deixou com muito para refletir durante o resto do dia em que o Brasil escolhia seus representantes nas urnas.
Os Dardenne começaram fazendo documentários nos anos 70 e migraram para a ficção no começo da década de 90. A dupla chamou a atenção com ‘A promessa’, de 1996, e levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1999 com ‘Rosetta’. Desde então, a cada três anos lançam uma nova obra premiada em Cannes. ‘O filho’, de 2002, e este último, ‘Dois dias, uma noite’, levaram os prêmios do Júri Ecumênico; ‘A criança’, de 2005, deu aos dois mais uma Palma de Ouro; ‘O silêncio de Lorna’, seu filme seguinte, foi escolhido na categoria roteiro; e ‘O garoto de bicicleta’, de 2011, recebeu o Grande Prêmio do Júri, o segundo mais importante da mostra.
Cronistas dos personagens descartados da sociedade, o duo desenvolveu a ideia para esta última pérola quando as consequências da crise econômica de 2008 começaram a aparecer mais claramente na Bélgica.
O enredo do filme pode ser resumido em uma frase: depois de seus colegas votarem por sua demissão em benefício de um bônus de mil euros, a operária Sandra (Cotillard) tem um fim de semana para ir atrás deles e convencê-los a mudar de ideia na nova votação que acontecerá segunda-feira. Luc conta, no bate-papo após a sessão, que leu num livro o caso real de uma pessoa que perdeu o emprego depois que a empresa ofereceu aos trabalhadores a escolha de manter o companheiro ou levar um bônus pra casa.
São muitas as camadas para se pensar sobre este filme, assim como sobre a obra dos Dardenne em geral. Sempre contando histórias da classe trabalhadora, os dois são considerados herdeiros do neorrealismo italiano também por seu estilo naturalista. Toda a simplicidade de sua proposta se traduz em refinamento e busca pelo essencial da linguagem cinematográfica. Os dois quase não usam trilha sonora, a não ser quando realmente querem marcar uma passagem da narrativa.
Em ‘Dois Dias, uma noite’, a música aparece basicamente no rádio do carro, e nos dois momentos em que se faz presente, é para marcar a mudança no estado de espírito da protagonista. É de se notar ainda a atenção especial que dedicam à composição de quadros e ao uso das cores. Num desenvolvimento da movimentação da câmera, de repente nos vemos assistindo a uma cena numa sala toda azul, ou com uma parede de tijolos vermelhos ao fundo, às vezes com personagens emoldurados num simbolismo do momento em que se encontram, ou diante de um muro dividido que também ressalta o tema da cena.
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Exemplo da cuidadosa composição de quadro dos Dardenne
Jean-Pierre e Luc filmam sem alarde, num estilo autoral com poucos cortes, planos-sequência longos, porém dinâmicos, e um trabalho fenomenal de direção de atores, com cada personagem deixando sua marca, ainda que com pouco tempo de tela.
Também após a sessão, Marion Cotillard – uma excelente atriz que alterna trabalhos na Europa com grandes produções nos EUA – disse que colaborou com muitos diretores com quem pensou que teria uma conexão especial, o que de fato não se realizou. E quando pensava que isso simplesmente nunca aconteceria, trabalhou com os irmãos belgas, na melhor experiência de sua vida como atriz: “A liberdade era tamanha que eu sentia que poderia fazer qualquer coisa.”
Em ‘Dois dias, uma noite’, a luta de Sandra, casada e mãe de dois filhos pequenos, é também uma luta por sua vida. Quando recebe a notícia de sua demissão, ela ainda se recupera de uma profunda crise de depressão que a colocou de licença médica. Tanto os diretores quanto a personagem principal – e consequentemente, o público – entendem a razão dos que votaram pela exclusão de Sandra. E enquanto ela bate de porta em porta para convencê-los a mudar de voto, a tela se povoa de tipos humanos. Especialmente em tempos de crise, todos têm seus motivos.
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O que finalmente me traz de volta à discussão sócio-política trazida pelos Dardenne. Sem usar um discurso panfletário, os dois estabelecem o espelho de um sistema político e social. E no dia em que uma eleição no Brasil alcançou 27% de votos brancos, nulos e abstenções (como a minha), a maior porcentagem desde 1998, assisto o diálogo da protagonista ao telefone com o primeiro colega abordado: ‘Abster-se não é o bastante, desculpe. Eu preciso que você vote por mim’.
Ela acaba sabendo ainda que um superior teria colocado medo nos trabalhadores, dizendo que alguém teria que ser demitido eventualmente. Impossível não pensar no medo usado por mais de um lado na campanha eleitoral em 2014. ‘Antes ele do que eu’, é o que diz o capital.
Num país ainda assombrado por pragas como o classismo, o racismo, a homofobia e a maior delas, a desigualdade social, como não refletir diante de um filme que discute o coletivo e o individual num sistema que lança pessoas umas contra as outras num ‘salve-se quem puder’? E que ainda estabelece como redenção para a protagonista o direito de se defender, de se expressar e de decidir seu destino? Perco a conta de quantos dos visitados por Sandra se defendem, dizendo que ‘não é culpa deles se lhes foi colocado para escolherem entre ela ou o bônus, é o sistema’.
Argumentam ainda que ‘não votaram contra ela, mas a favor deles’. Sim, todos têm suas razões. Mas ao mesmo tempo, ninguém pode escapar de suas escolhas. E quer queiram, quer não, numa disputa de interesses, assim como na luta de classes, quem não está de um lado está de outro. Questões muito relevantes, especialmente pra quem acha que política só se faz na capital federal ou no dia da eleição. Política se faz todo dia. E toda noite.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Colaboração com o ORNITORRINCO

Texto originalmente publicado no ORNITORRINCO

CONQUISTA SANGRENTA E O RETRATO DE UMA TERRÍVEL ÉPOCA DA HUMANIDADE



Desde sempre, carrego o cinema comigo. Os filmes que vi formaram grande parte do meu imaginário. E pelos cantos que andei, eles, os filmes, sempre foram a constante fonte das minhas referências. Assim sendo, especialmente quando conheço um lugar novo, acabo retornando para algumas dessas referências ao voltar pra casa.

Toda essa introdução é para justificar o uso dessas linhas para falar de um filme de 1985, quando eu sequer era nascido.

Também sempre fui fascinado pela cultura medieval e, depois dos vinte dias que passei visitando castelos em Portugal, voltei com a vontade de rever um velho e obscuro filme: Conquista Sangrenta (Flesh + Blood no original).

A memória da adolescência me trai, mas acredito ter descoberto essa pérola numa sessão na madrugada da TV Globo. Desde então, fez parte da minha abandonada coleção de fitas. Lembro de, à época, ter me impressionado com o retrato sujo da Idade Média que o diretor holandês Paul Verhoeven pintou no seu primeiro filme americano, e com a revisão que fiz semana passada, passei a abraçar ‘Conquista Sangrenta’ como um dos mais interessantes filmes já feitos sobre o período medieval, uma opinião que, pelo que descobri na internet, não é exclusivamente minha.

O ano é de 1501, Europa Ocidental. O filme começa com a batalha de um nobre para retornar à cidadela da qual foi expulso. Ele conta com um experiente capitão comandando um exército com vários mercenários, a quem é prometido o direito de saquear a cidadela, uma vez ela retomada. Após a vitória, o nobre obriga o capitão a trair os mercenários, que acabam expulsos do lugar e tornam-se uma espécie de gangue de ladrões andantes.

Originalmente, a ideia de Verhoeven era focar a história na relação de Martin, líder dos mercenários (interpretado por Rutger Hauer), com o capitão que o traiu. Por pressões do estúdio, a narrativa acabou alterada para se concentrar no triângulo amoroso entre Martin, Agnes (Jennifer Jason Leigh), a moça que o grupo acaba sequestrando, e Steven, filho do nobre do começo do filme e um homem da Renascença, a quem Agnes estava prometida.

A produção internacional, filmada na Espanha com atores de várias partes do mundo, é recheada de histórias. As interferências do estúdio irritaram Verhoeven, que quase foi demitido e, posteriormente, declarou ter sido esta a pior experiência de sua vida, tendo inclusive feito com que ele considerasse abandonar o cinema. O que não aconteceu. Verhoeven seguiu carreira muito bem sucedida nos EUA, sempre com cinismo, acidez e uma dose de análise social. Dirigiu RoboCop, O Vingador do Futuro, Instinto Selvagem, e caiu em desgraça com a bomba Showgirls.


O estilo improvisado adotado pelo holandês causou atrasos nas filmagens, afetadas ainda por problemas com o tempo, levando o filme a estourar o orçamento. Segundo informações do IMDB, atores consumiam drogas e álcool no set e o relacionamento entre as equipes era péssimo.

As tensões entre o diretor e seu conterrâneo e parceiro de longa data Rutger Hauer interromperam a amizade e a rotina de colaborações entre os dois, que discordavam sobre a abordagem para o personagem Martin. Segundo a biografia de Verhoeven, escrita por Douglas Keesey, Hauer queria fugir dos tipos vilanescos, como acontecera em Blade Runner e como acontece invariavelmente com atores estrangeiros.

Em uma entrevista disponível no youtube, o já falecido ator americano Brion James também assume que foi a pior experiência de sua vida. Ele diz que Verhoeven, apesar de talentoso, é um maníaco controlador que tratava o elenco como gado, o que só piorava com o frio nas locações e a falta de segurança na hora das cenas de ação, encenadas sem dublês. O próprio James assume, ”acabou sendo o melhor filme de Idade Média que eu já vi, mas não valeu a pena”.

Fascinante é ver como, apesar de todos os problemas, ‘Conquista Sangrenta’ se mostra um filme singular. Acostumado a ver o período medieval romantizado no cinema, a intenção de Verhoeven era mostrar como era uma época terrível para se viver. E mesmo com a interferência dos estúdios, está tudo lá, num mundo de trevas, cru, sujo, cheio de miséria, sexo, ambiguidade moral, religiosidade manipuladora, brutalidade e peste bubônica.

Ninguém se salva, ninguém é mocinho, e todos parecem bandidos. O mais próximo de uma exceção moral é o personagem Steven, o homem renascentista, recém-chegado de ter completados seus estudos na universidade e ansioso para por seus conhecimentos e invenções em uso no campo de batalha.

A personagem de Jennifer Jason Leigh também é muito interessante, pois é uma donzela virgem que aprende rapidamente como manipular sexualmente os homens, mas com legítimo intuito de sobreviver. Numa das cenas mais fortes e famosas, Agnes reverte o estupro que está sofrendo por Martin e acaba convencendo-o a mantê-la só para ele, evitando ser violada pelos outros membros do grupo.

E finalmente, o equilíbrio de forças entre as ideias de Rutger Hauer e do diretor Paul Verhoeven geram em Martin um personagem complexo, um homem de seu tempo, violento, heroico, trapaceiro, manipulador e brutal.

Não se engane pelos pôsteres de divulgação que você encontrar na internet, que parecem anunciar uma fantasia medieval. Apesar da sua trilha sonora, um dos únicos pontos dissonantes do clima do filme na minha opinião, ‘Conquista Sangrenta’ é o retrato honesto de uma terrível época da humanidade.

Trailer

Lucas Gutierrez é ator, escritor e jornalista.