Nunca
li nada de José Saramago. E não me perdoo por isso.
Em
2011, me apaixonei não só por Saramago como por sua companheira Pilar del Río.
Tudo graças ao doc ‘José e Pilar’, de Miguel Gonçalves Mendes, que tive a
oportunidade de assistir no Festival do Rio e rever hoje, no Canal Brasil.
Gigante
de um carisma inigualável do alto de seus 83 anos - no início das filmagens,
que registram quase três anos do dia a dia do casal ao mesmo tempo em que
acompanham o processo de produção do livro ‘A viagem do elefante’ – José
Saramago domina, por vezes quase involuntariamente, cada passagem do filme.
Pilar não faz por menos e está sempre por perto, como esposa, assessora, uma verdadeira
extensão de Saramago, além de uma mulher fortíssima (nunca esqueci suas
colocações na entrevista que ela dá a um jornalista, quando defende o uso da
palavra ‘presidenta’: “A palavra não existia porque não existia o cargo. Quem
me chama de ‘presidente’ é ignorante”).
Contando
com uma intimidade adquirida com José e Pilar, Miguel Gonçalves Mendes faz um
documentário em cinema direto extremamente pessoal, capturando momentos íntimos
da vida do casal, passagens de desconstrução do mito do grande autor literário - que tal a cena (foto ao lado) em que Saramago está concentrado diante do computador em seu escritório, pensando e pensando até que a câmera mostra a tela do pc e vemos que ele está jogando paciência 'para afastar o Alzheimer' - além de belíssimas
imagens da ilha de Lanzarote, na Espanha, onde os José e Pilar mora(va)m. Tudo associado
a uma linda trilha sonora (com belos fados e a participação da brasileira
Adriana Calcanhotto).
Assim,
durante duas horas conhecemos um pouco mais sobre esse casal separado por 28
anos e em total sintonia. Não à toa, Saramago dedica quase todos os seus livros
à companheira e diz que Pilar impediu que ele morresse. E como se não bastasse ficarmos
embasbacados pela vitalidade e lucidez (incentivadas e até possibilitadas pelo
trabalho de Pilar) de um homem acima de seus 80 anos, ainda temos a
oportunidade de ouvir Saramago disparar uma pérola atrás da outra, destilando
um bom humor realista, que alguns poderiam chamar pessimista. O escritor é de
uma sinceridade crua e lírica ao mesmo tempo; enxerga a finitude da vida, o
absurdo do mundo e os encara com um despretensioso fio de esperança na forma de
palavras escritas na língua que ele mesmo considera a mais bonita do mundo: o
português.
Não
me perdoo por ainda não ter lido nada de Saramago. Mas tenho o que este homem, que
se tornou escritor profissional aos 60 anos, afirma não ter mais, em
determinado momento do filme: tempo. E intendo aproveitá-lo para conhecer mais
este gênio de língua igual a minha.
MEMO:
Aqui, de fato, são muitas as cenas memoráveis. Mas entre a reação de Saramago
assistindo a ‘Ensaio sobre a cegueira’ ao lado de Fernando Meirelles (também
produtor do doc), a sequência em que o português, exausto, e Gabriel García
Marquez dormem sentados durante um bate-papo com universitários e muitas outras
sequências estupendas, separo o caso de Stefano, que entra em cena perto do fim
do filme, durante a noite de autógrafos de ‘A viagem do elefante’, em São
Paulo. O sujeito tem diante de si um prêmio Nobel, um dos escritores mais
consagrados do mundo e, talvez acima de tudo isso, um senhor de 85 anos, que se
dedica a assinar TODOS os livros que lhe são solicitados e chega a se desculpar
por conta da impossibilidade de fazer dedicatórias, uma vez que a demanda é
muito grande e o tempo é curto. Aí me chega o Stefano, sob os protestos da
assessora e manda: ‘Saramago, você pode desenhar um hipopótamo pra mim?’.
Inacreditável.