Encruzilhada

Encruzilhada

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Colaboração com o ORNITORRINCO

Texto originalmente publicado no ORNITORRINCO

CONQUISTA SANGRENTA E O RETRATO DE UMA TERRÍVEL ÉPOCA DA HUMANIDADE



Desde sempre, carrego o cinema comigo. Os filmes que vi formaram grande parte do meu imaginário. E pelos cantos que andei, eles, os filmes, sempre foram a constante fonte das minhas referências. Assim sendo, especialmente quando conheço um lugar novo, acabo retornando para algumas dessas referências ao voltar pra casa.

Toda essa introdução é para justificar o uso dessas linhas para falar de um filme de 1985, quando eu sequer era nascido.

Também sempre fui fascinado pela cultura medieval e, depois dos vinte dias que passei visitando castelos em Portugal, voltei com a vontade de rever um velho e obscuro filme: Conquista Sangrenta (Flesh + Blood no original).

A memória da adolescência me trai, mas acredito ter descoberto essa pérola numa sessão na madrugada da TV Globo. Desde então, fez parte da minha abandonada coleção de fitas. Lembro de, à época, ter me impressionado com o retrato sujo da Idade Média que o diretor holandês Paul Verhoeven pintou no seu primeiro filme americano, e com a revisão que fiz semana passada, passei a abraçar ‘Conquista Sangrenta’ como um dos mais interessantes filmes já feitos sobre o período medieval, uma opinião que, pelo que descobri na internet, não é exclusivamente minha.

O ano é de 1501, Europa Ocidental. O filme começa com a batalha de um nobre para retornar à cidadela da qual foi expulso. Ele conta com um experiente capitão comandando um exército com vários mercenários, a quem é prometido o direito de saquear a cidadela, uma vez ela retomada. Após a vitória, o nobre obriga o capitão a trair os mercenários, que acabam expulsos do lugar e tornam-se uma espécie de gangue de ladrões andantes.

Originalmente, a ideia de Verhoeven era focar a história na relação de Martin, líder dos mercenários (interpretado por Rutger Hauer), com o capitão que o traiu. Por pressões do estúdio, a narrativa acabou alterada para se concentrar no triângulo amoroso entre Martin, Agnes (Jennifer Jason Leigh), a moça que o grupo acaba sequestrando, e Steven, filho do nobre do começo do filme e um homem da Renascença, a quem Agnes estava prometida.

A produção internacional, filmada na Espanha com atores de várias partes do mundo, é recheada de histórias. As interferências do estúdio irritaram Verhoeven, que quase foi demitido e, posteriormente, declarou ter sido esta a pior experiência de sua vida, tendo inclusive feito com que ele considerasse abandonar o cinema. O que não aconteceu. Verhoeven seguiu carreira muito bem sucedida nos EUA, sempre com cinismo, acidez e uma dose de análise social. Dirigiu RoboCop, O Vingador do Futuro, Instinto Selvagem, e caiu em desgraça com a bomba Showgirls.


O estilo improvisado adotado pelo holandês causou atrasos nas filmagens, afetadas ainda por problemas com o tempo, levando o filme a estourar o orçamento. Segundo informações do IMDB, atores consumiam drogas e álcool no set e o relacionamento entre as equipes era péssimo.

As tensões entre o diretor e seu conterrâneo e parceiro de longa data Rutger Hauer interromperam a amizade e a rotina de colaborações entre os dois, que discordavam sobre a abordagem para o personagem Martin. Segundo a biografia de Verhoeven, escrita por Douglas Keesey, Hauer queria fugir dos tipos vilanescos, como acontecera em Blade Runner e como acontece invariavelmente com atores estrangeiros.

Em uma entrevista disponível no youtube, o já falecido ator americano Brion James também assume que foi a pior experiência de sua vida. Ele diz que Verhoeven, apesar de talentoso, é um maníaco controlador que tratava o elenco como gado, o que só piorava com o frio nas locações e a falta de segurança na hora das cenas de ação, encenadas sem dublês. O próprio James assume, ”acabou sendo o melhor filme de Idade Média que eu já vi, mas não valeu a pena”.

Fascinante é ver como, apesar de todos os problemas, ‘Conquista Sangrenta’ se mostra um filme singular. Acostumado a ver o período medieval romantizado no cinema, a intenção de Verhoeven era mostrar como era uma época terrível para se viver. E mesmo com a interferência dos estúdios, está tudo lá, num mundo de trevas, cru, sujo, cheio de miséria, sexo, ambiguidade moral, religiosidade manipuladora, brutalidade e peste bubônica.

Ninguém se salva, ninguém é mocinho, e todos parecem bandidos. O mais próximo de uma exceção moral é o personagem Steven, o homem renascentista, recém-chegado de ter completados seus estudos na universidade e ansioso para por seus conhecimentos e invenções em uso no campo de batalha.

A personagem de Jennifer Jason Leigh também é muito interessante, pois é uma donzela virgem que aprende rapidamente como manipular sexualmente os homens, mas com legítimo intuito de sobreviver. Numa das cenas mais fortes e famosas, Agnes reverte o estupro que está sofrendo por Martin e acaba convencendo-o a mantê-la só para ele, evitando ser violada pelos outros membros do grupo.

E finalmente, o equilíbrio de forças entre as ideias de Rutger Hauer e do diretor Paul Verhoeven geram em Martin um personagem complexo, um homem de seu tempo, violento, heroico, trapaceiro, manipulador e brutal.

Não se engane pelos pôsteres de divulgação que você encontrar na internet, que parecem anunciar uma fantasia medieval. Apesar da sua trilha sonora, um dos únicos pontos dissonantes do clima do filme na minha opinião, ‘Conquista Sangrenta’ é o retrato honesto de uma terrível época da humanidade.

Trailer

Lucas Gutierrez é ator, escritor e jornalista.