Encruzilhada

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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Um segundo para a imortalidade

texto originalmente publicado no ORNITORRINCO


Em uma de minhas muitas viagens no YouTube, me vejo descobrindo a obra de George Carlin. Admiro a verve reflexiva de alguns dos artistas que fazem comédia em pé nos Estados Unidos, Bill Maher, Chris Rock, Louis CK, além do britânico hiperativo Russell Brand. E sei que deveria conhecer melhor muitos outros tão especiais quanto.

Mas o que me traz a essas linhas é o sentimento que tive ao ouvir a retórica deste senhor, morto em 2008. Enquanto Carlin, todo vestido de preto e rabo de cavalo grisalho, despeja conceitos e pensamentos sobre a sociedade americana contemporânea num vídeo do começo da década de 90, sinto como se ele estivesse realmente falando comigo. E me dou conta que estou ouvindo as ideias de um homem que já não faz parte deste mundo. Ou faz?

Mas isso é a coisa mais antiga do mundo, não? Nossa existência é banhada, e às vezes regida, pelo conhecimento, pela obra e pelas histórias deixadas aqui pelos que vieram antes. Ponho-me a pensar então sobre a imortalidade. Será a obra de uma pessoa a extensão de seu ser?

Definitivamente a obra de alguém tem a capacidade de viver mais do que o seu autor. Bob Marley declarou que sua música viveria para sempre. Mas o autor vive através dela? Ver uma tela de Van Gogh ou ouvir um concerto de Vivaldi é perpetuar sua existência? Quando vejo um esquete de Mussum, ele está vivo?
O humorista George Carlin

A discussão é antiga. William Faulkner escreveu que "como o homem é mortal, a única imortalidade possível pra ele é deixar pra trás algo que seja imortal". Este é o seu modo de dizer ‘Eu estive aqui’. E a obra só se completa quando o triângulo fecha e existe alguém para ver, ouvir, ler, contemplar ou se relacionar com este pedaço de imortalidade.

Já Orson Welles não supunha que seria lembrado por nada. E não enxergava seu trabalho desta forma. “É tão vulgar trabalhar pela posteridade quanto é trabalhar pelo dinheiro”, disse.

Anthony Burgess, autor de ‘Laranja Mecânica’, achava que, em dois mil anos, todos os nossos generais e políticos podiam ser esquecidos, mas que Einstein, Madame Curie, Bernard Shaw e Stravinsky manteriam a memória do nosso tempo viva.

No entanto, acho que a questão fica mais complexa com a tecnologia e a representação da arte em forma digital. A imagem age com uma força instantânea. Ver George Carlin andando e falando é ver a pessoa por completo, confere muita força a essa presença. Muito diferente de ler um texto de Platão. Quem venceria numa batalha pela memória: a ideia ou a imagem?

No filme ‘Capitão Sky e o Mundo do Amanhã’, de 2004, os realizadores manipularam gravações da BBC com Laurence Olivier e fizeram dele, morto em 1989, o vilão do filme. Algo similar aconteceu com Marlon Brando que apareceu em ‘Super-Homem, o Retorno’ dois anos depois de morrer.

O próprio YouTube é uma videoteca universal do terceiro milênio, e um mausoléu digital neste sentido. Pois ali você pode ver dos primeiros registros cinematográficos da história humana aos episódios perdidos do Chaves ou do Jiraya.

Robert Louis Stevenson foi além, ao escrever que "não se ater mais ao tempo e às estações, não contar as horas por toda a vida, isto é viver pra sempre".


E pra terminar em sintonia com o começo, fechando um círculo, mas sem nenhuma conclusão – porque ninguém aqui prometeu uma resposta ou um sentido pra qualquer coisa nesse fim de texto – evoco outro comediante, tornado cineasta e escritor. Numa piada, Woody Allen diz que não quer atingir a imortalidade por seu trabalho, mas sim por não morrer. “Não quero viver no coração dos meus compatriotas, quero viver no meu apartamento”. Mas falando sério, quando perguntado sobre o que escolheria, dois anos a mais de vida ou a realização da sua obra-prima (que ele afirma ainda perseguir), Woody respondeu:

- Eu escolheria os dois anos. Escolheria os dois meses!