Encruzilhada

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terça-feira, 14 de julho de 2015

'A Gangue' e os garotos perdidos da Ucrânia

‘A GANGUE’ E OS GAROTOS PERDIDOS DA UCRÂNIA


‘A Gangue’ intriga já de cara. 

Na entrada da sala, assim como no início dos créditos, há um aviso: este filme é todo em linguagem de sinais, não há tradução ou legendas. A partir daí acompanhamos a chegada de um jovem a uma escola interna para surdos, onde ele é apresentado e integrado a um sistema de violência, roubo e prostituição.
Os jovens de ‘A Gangue’ são como uma versão marginal dos garotos perdidos das histórias do Peter Pan, vivendo numa Terra do Nunca da Ucrânia, decadente e abandonada, onde os adultos quase nunca estão presentes. E quando estão, aparecem como agentes da corrupção.  
O uso exclusivo da linguagem de sinais não só reforça a ideia dos códigos próprios que esta tribo possui, mas ainda provoca uma relação singular do expectador com o silêncio. O estreante em longas Miroslav Slaboshpitsky (que também assina o roteiro) não usa trilha sonora e faz uma rica captação de som ambiente, o que resulta num daqueles trabalhos em que menos é mais. Em determinados momentos, o som de um caminhão dando ré, do vidro se quebrando ou de um gemido de dor atingem o expectador com muito mais força do que se amplificados ou conduzidos por uma trilha.


Composto de apenas 34 tomadas, em que longos planos-sequências nos conduzem pelos ambientes dos jovens, e onde atores e cenários são sempre filmados de frente e em ângulo aberto, ‘A Gangue’ possui um realismo que, tanto em forma como em conteúdo, mantém um parentesco com outras obras recentes do leste europeu. Mas ainda que seja cru e às vezes ultraviolento, também me lembrou um pouco o trabalho dos Irmãos Dardenne (‘A criança’, ‘O garoto da bicicleta’, ‘Dois dias, uma noite’), no cuidado especial com determinados enquadramentos e no uso das cores (aqui, predominantemente o azul).  
Premiado em Cannes e na Mostra de SP em 2014, ‘A Gangue’ foi lançado comercialmente no Brasil em maio deste ano, mas não parece ter feito muito barulho por estas terras. Uma pena. Pois com uma série de sequências chocantes, mas nem por isso menos memoráveis, este é um dos filmes mais intrigantes, instigantes e perturbadores que eu vi nos últimos tempos.