Encruzilhada

Encruzilhada

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

NY-RJ


É duro mudar. Já não conto mais nos dedos as vezes em que me peguei com aquele frio na barriga, diante de um penhasco metafórico, temendo me jogar. ‘É preciso pular para voar’, me dizia um professor de interpretação nos Estados Unidos.

Mas o medo sempre está por lá. Às vezes na forma deste embrulho, outras na procrastinação. Demorei uma hora, por exemplo, para começar a preencher esta página em branco que você agora lê. E por quantas outras vezes não deixei tudo de mais importante para o dia seguinte, sempre com fé de que amanhã eu vou fazer?  

Há ainda as vezes em que bate a boa e velha preguiça. Boa, velha e mentirosa preguiça. Certa vez, outro professor de interpretação (mestre do primeiro a que me referi) me perguntou o motivo de eu sempre chegar atrasado às suas aulas. Eu disse que ia pra cama tarde, sempre dormia um pouco mais da conta e acabava perdendo a hora.

Ele perguntou ‘Por quê’? Eu respondi ‘Porque sou preguiçoso’. Ele emendou ‘Eu não acredito em preguiça’.

Ele estava certo. Aquela preguiça era medo. Medo de crescer, medo de mudar. Tamanho medo de não conseguir o que quer que se queira, que então melhor nem tentar. Talvez toda preguiça seja medo. Desde então, também não acredito na preguiça. Embora ainda seja preguiçoso.

Estou de volta ao Brasil, ao Rio de Janeiro, depois de dois anos morando em Nova York. É uma sensação estranha. Quando saí daqui para me mudar para outro país, sabia que ia voltar em dois anos. Agora, há uma semana, deixei Nova York. E não sei quando vou voltar.

Todo adeus tem um pouco de morte. Ainda que a morte seja um passo para um renascimento, uma nova fase, um novo momento. Ao deixar Nova York, eu me despedi de muitas coisas. Dos meus passeios de bicicleta, do supermercado de comida natural, dos parques, dos amigos, do jazz, dos teatros, das minhas sessões à meia-noite, dos meus lugares favoritos.

É minha última noite na cidade, assisto a uma sessão de ‘Veludo Azul’ no IFC Center, o cinema em que me senti em casa pela primeira vez na cidade, há dois anos, quando me deparei com aquele letreiro antigo na saída do metrô da West 4th St. E aí caminho por umas duas horas, cruzando ruas, entrando e saindo de bairros, esbarrando em bêbados do Village ao Lower East, mendigos em Midtown, e gente que anda na madrugada como se fosse dia. Entro em um pub, tomo um uísque sour e um mojito. O garçom irlandês me pergunta como foi o meu dia. Eu lhe digo que é minha última noite na cidade. Estou voltando para o Brasil. Ele diz que sente saudades da Irlanda.

Minha esposa diz que dois anos passam rápido. Ela diz isso há dois anos. Eu discordo. O tempo é sempre relativo. Nós só o percebemos ao passo que ele passa. Olhando pra trás, tudo parece rápido, curto. Porque já vivemos, estamos olhando para o que já foi e vivendo de lembranças e recordações. Enquanto adiante, nada é; tudo sempre está para ser. O futuro é uma luz que te cega quando você olha direto pra ela. E aí é como se houvesse todo tempo do mundo. Porque não se pode ver. Talvez o tempo seja a manifestação mais concreta da vida. Ou de Deus. Tal qual o futuro, Deus também só existe à medida em que acreditamos Nele.

Lembro de Shakespeare. ‘Sabemos o que somos, não sabemos o que poderemos ser’.

Agora estou no Brasil. O mesmo Brasil que defendi tantas vezes (inclusive aqui no ORNITORRINCO), saudoso que estava quando lá, feliz quando passava eu uma semana cá. Um amigo certa vez me contou uma piada cuja moral era: o inferno – e o paraíso também – são diferentes pra quem vem visitar e pra quem vem morar.

Se quando parti tive que me acostumar a tudo novo, bairro, cidade, apartamento, meio de transporte e modo de vida, aqui a vida segue a mesma. A mesma praia, o mesmo hortifruti toda segunda-feira, a mesma casa, a mesma avenida. É quase como se não tivesse ido. Como se tivesse simplesmente voltado de férias.

E entre tantos sentimentos misturados, descubro um verso de Fernando Pessoa que define esse pouco de morte e esse novo nascimento:

“Tudo é o mesmo afinal…
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal”.