Encruzilhada

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sábado, 10 de outubro de 2015

Diário do Festival do Rio: Paulina e Sicario: Terra de Ninguém

Originalmente publicado no ORNITORRINCO

== Paulina ==
Premiado em Cannes, o longa argentino de Santiago Mite (colaborador frequente nos roteiros dirigidos por Pablo Trapero) é um murro na moral. Não é bom saber muito da história antes de assistir ao filme, por isso não vou postar aqui o trailer - é bom também fugir das sinopses. 
Numa descrição sem spoiler, este filme acompanha uma advogada de classe média, filha de um juiz, que decide largar a carreira para trabalhar num projeto de educação no campo, na fronteira da Argentina com Paraguai.
Produzida por Walter Salles, ‘La Patota’, no original, é uma refilmagem de um longa argentino de mesmo nome, dirigido por Daniel Tinayre. Se sua temática é polêmica e complexa para os dias de hoje, imagino sua recepção em 1960, quando o original foi lançado (ele está disponível no Youtube aqui).
O que mais impressiona em ‘Paulina’, além das atuações viscerais, é a sobriedade da discussão sobre o que é a verdade, o que é justiça, e a diferença entre um e outro. Há vários pontos de vista em questão, há muito a ser discutido e defendido por todos os lados, e o longa coloca o espectador como a única parte testemunha das diferentes perspectivas acerca dos acontecimentos da história.. Encabeçando a batalha retórica estão Dolores Fonzi (’Plata Quemada’, ‘O crítico’) e Oscar Martínez (o pai milionário de ‘Relatos Selvagens’), cujas cenas juntos, em especial as que abrem e fecham o filme, são uma aula de interpretação, roteiro e fotografia por si só.
Não vamos falar tanto de Paulina agora. Assista, e aí conversemos.
Próximas sessões:
Domingo, 11/10 21:15 Estação NET Botafogo 1
Terça, 13/10 19:10 Estação NET Ipanema 1
== Sicario: Terra de Ninguém == 
Considero Denis Villeneuve é um dos cineastas mais vibrantes atuando no norte da América nesses últimos tempos. Canadenese de origem, conquistou o mundo com ‘Incêndios’, e desde então ascendeu em Hollywood com ‘Os suspeitos’ (Prisoners) e o pequeno, porém precioso, ‘O Homem Duplicado’ - para se ter uma ideia de seu cacife atual, o próximo trabalho do cineasta deve ser a continuação de Blade Runner.
Aqui seguimos Kate Macer (Emily Blunt), uma agente do esquadrão anti-sequestro atuando no Arizona, que acaba recrutada por um agente do governo (Josh Brolin) para uma operação contra o cartel de Juárez. Quem também faz parte da operação é o misterioso Alejandro (Benicio Del Toro).
Ainda que ‘Sicario’ não seja um filme tão bom quanto seus três anteriores, Villeneuve surpreende, abordando um tema batido (o combate ao tráfico de drogas) da forma espinhosa que ele merece. 
Em vez de uma sequência de ação descerebrada atrás da outra, o diretor equilibra momentos de tensão com desenvolvimento dos personagens. Kate Macer é eficiente, competente, mas seu trabalho a deixa em frangalhos, uma vulnerabilidade encarada de peito aberto por Emily Blunt. 
Algo parecido acontece com o personagem de Benicio Del Toro, sempre fenomenal de se ver. A diferença é que Alejandro é mais eficiente, mais competente e suas tragédias são escondidas de forma mais profunda. Trata-se de uma figura complexa que cresce em protagonismo à medida que a narrativa se desenvolve - tanto que em Hollywood já se fala em um novo filme só para o seu personagem.  
Há uma tensão incessante aqui, acentuada na trilha angustiante de Jóhann Jóhannsson e na fotografia do mestre Roger Deakins, com uma paleta de cores que vai das sombras de um mundo ‘dos lobos’ como diz - sempre do escuro - o personagem de Del Toro, ao amarelo arenoso, sinalizando que a maior das guerras em desertos é travada pelos estadunidenses em seu quintal de casa, na fronteira com o México.
Apesar de a história carecer de substância, é louvável como o diretor aborda com sobriedade as múltiplas variáveis no conflito, algo que um primo distante de ‘Sicario’, ‘Tropa de Elite’, não trabalhou tão bem. 
No fim, vidas e famílias de todos os lados são destruídas, fronteiras éticas são borradas e ignoradas com aval oficial do país mais rico - e maior consumidor de drogas - no mundo, num espiral de violência sem fim, que agride rico e pobre, norte e sul, sublinhando a estupidez que é a política de guerra às drogas patrocinada e liderada pelos EUA. 
Não há mais sessões pelo Festival, mas ‘Sicario’ deve estrear em breve no Brasil.